O caminho para a Trap-house

Apresentamos 10 discos para você entender o percurso encarado pelo sub-gênero até que ele se tornar o mais ouvido do mundo em 2019

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De acordo com o dados do Nielsen’s Report – um dos relatórios mais respeitados do mundo da música – em 2018, o Hip-Hop e o R&B ulTrapassaram o Rock como o gênero mais ouvido pela primeira vez na história. O mesmo relatório feito nos Estados Unidos com dados até a primeira metade deste ano, mostra a permanência do gênero no topo e ainda faz o recorte do Trap – evidenciando artistas como Post Malone, Lil Nas X e DaBaby como responsáveis pela manutenção. Assim como destaca Billie Eilish e Ariana Grande que incorporaram a sonoridade do sub-gênero em hits como “Bad Guy” e “7 rings”, respectivamente. 

Apesar de hoje o Trap ser, de fato, a música Pop mundial – como os dados do Nielsen evidenciam – esse sub-gênero tem raízes muito mais profundas do que os copos de lean, glocks e roupas da Gucci demonstram. Se você ainda não conhece esse ritmo que mora no coração do jovem millennial ou já saca e quer se aprofundar, aqui apresentamos 10 discos que te dão o caminho para a rua sem saída da Trap-house.

Triple 6 Mafia – Underground Vol. 1 (1999)

Durante os anos 1990, o Rap se dividiu em basicamente duas polaridades: o Boom-Bap de Nova York, marcado pela golden-era e conhecido como o período clássico do gênero e o G-Funk, feito em Los Angeles e na Costa Oeste, liderados por Ice Cube e Dr. Dre. Correndo por fora, havia o Rap feito no Sul que não se encaixava em nenhum dos lados e, por isso, esteve de fora do mainstream e era frequentemente ridicularizado. Como resultado, os rappers geralmente lançavam seus sons de maneira independente, permitindo uma grande variedade de experimentações sonoras. Apesar de Atlanta ser creditada como o berço do Trap moderno, o embrião do sub-gênero vem de Memphis. A marcação rítmica, o triplet flow e o uso impactante do 808 que hoje vemos infiltrado na música Pop começaram a ser utilizados no Memphis Rap, feito na cidade homônima.

Desse período, é inevitável destacar a mixtape Underground Vol. 1 (1999), do grupo Three 6 Mafia, que reunia músicas feitas entre 1991 e 1994. Formado basicamente por Juicy J e o produtor DJ Paul, o grupo foi responsável por aperfeiçoar os primeiros sons de DJ Squeeky e, com faixas como “Playa Hataz” e “Break Da Law”, explorava temas como assassinato, violência entre gangues e tráfico de drogas com um certo orgulho. A mixtape ainda contou com nomes notáveis do Memphis Rap como Project Pat, Lord Infamous, entre outros.

“Influenciou muito o Phonk, Drill e outros sub-gêneros seja na forma de samplear e principalmente no uso de hi-hats e snares”, comenta o beatmaker LVKS. O produtor musical Ubora Jun complementa: “Na bateria, os hats são bastante divididos ritmicamente. A característica mais evidente nesses hats é o momento em que são tocados em alta velocidade, deixando o som bem repicado, dividido, em certas partes do compasso musical”.

T.I. – Trap Muzik (2003)

Quase dez anos depois da mixtape do Three 6 Mafia, o rapper T.I. lança o segundo álbum da carreira: Trap Muzik (2003). Vindo de Atlanta, o auto-intitulado “Rei do Sul” foi responsável por popularizar o termo. “Na época a gente não sabia o que era Trap ainda aqui no Brasil. Até eles, a cena não estava estabelecida como está hoje”, pontua Jé Santiago, rapper da Recayd Mob. Apesar de Trap Muzik ser pioneiro, o disco ainda parecia muito conectado ao seus embriões, como denota “Beezle”, uma das principais faixas do projeto com participação de 8Ball & MJG, dois grandes nomes no Memphis Rap e Pimp-C, do duo UGK.

Também contou com um Kanye West em início de carreira produzindo a clássica “Let Me Tell You Something”. 19 de agosto de 2003, “o nascimento da música Trap e só otários disputam com fatos” – T.I. disse em postagem no Instagram em resposta a Gucci Mane se proclamando o criador do sub-gênero. É quando a polêmica sobre “quem criou” se inicia e chegamos ao nosso próximo capítulo.

Young Jeezy – Tha Streets Iz Watchin (2004)

Nem Gucci Mane, nem T.I.. Apesar de muita gente estar fazendo uma parada parecida no início do milênio no sul do EUA – o que torna difícil de definir onde o sub-gênero realmente começou – uma galera influente em Atlanta considera essa mixtape de Young Jeezy (hoje apenas Jeezy) como o nascimento da música Trap. Coach K., empresário do trio Migos e ex-empresário dos rivais Gucci Mane e Jeezy comenta em documentário da Noisey que “a música Trap não havia sido realmente inventada” até sua gravadora, a Quality Control Records, lançar a primeira mixtape de Jeezy com DJ Drama. Segundo ele, o ethos sob qual seu ex-artista vivia o fazia muito mais conectado as ruas do que o disco de T.I.. Jeezy era associado a Black Mafia Family (BMF), uma das maiores organizações criminosas dos Estados Unidos, responsáveis por enormes esquemas de lavagem de dinheiro e crime organizado. Como um narrador dessas vivências e abraçando o estilo glamouroso de vida proporcionado pelo tráfico, o som de Jeezy penetrou muito mais nas ruas sem saída e supervias, as rotas do tráfico de Atlanta.

Gucci Mane – Trap House (2005)

Gucci Mane surge quase ao mesmo tempo que Young Jeezy. Coach K. também foi o responsável por unir ambos na faixa “Icy”, carro-chefe e grande hit deste disco. A música em questão também é marcada pela produção de Zaytoven, um dos beatmakers aplaudidos como arquitetos da sonoridade. Assim, esse LP destaca a transição entre a influência de Memphis, presente até no nome de Gucci (“Mane” é uma gíria de Memphis e a maneira de pronunciar “man” na cidade) e o Trap moderno que começou a invadir as rádios dos anos 2000 com os flows característicos, mas principalmente com as batidas. “O beat Trap começa ali no 120bpm até o 180bpm e geralmente tem um drum-kit parecido com Miami Bass e o 808, que caracterizou muito o Three 6 Mafia. Tem esse apelo de bass”, define Jonas Profeta, beatmaker e rapper da Pirâmide Perdida. Ubora Jun detalha: “Os instrumentos de frequências graves são ainda mais graves que nos outros gêneros de Rap […] Os timbres tanto da bateria quanto do sub bass costumam ser da Roland TR-808, de máquinas similares ou de modificações da TR-808”.

Se T.I. foi padrinho do Trap e Jeezy seu difusor nas ruas, Gucci uniu ambos e assumiu a coroa na cidade com súditos tentando chegar até ele e provar seu valor.

SpaceGhostPurrp – Mysterious Phonk: The Chronicles of SpaceGhostPurrp (2012)

Durante os anos 2000, as faixas com produção sulista e sua estética dominaram o Hip Hop. O Trap é agora o som mais influente e popular oriundo do Sul, infiltrado no mainstream e no underground por meio de artistas como Lil Wayne e Waka Flocka Flame. Aqui, procuramos selecionar não apenas discos de sucesso comercial mas, principalmente as investidas menos celebradas, mas que promoveram inovações e avanços no sub-gênero.

Nessa pegada, a mixtape de estreia de SpaceGhostPurrp, também conhecido como SGP é um ponto notável no caminho da evolução do Trap. Ele foi o fundador do Raider Klan, um coletivo de Hip Hop iniciado em Miami no ano de 2008 e que se expandiu com filiações em Nova York, Atlanta, Los Angeles e, claro, em Memphis. Mais uma vez, a sonoridade criada na cidade ao sudeste do Tennessee é referenciada, porém atualizada para a roupagem do início dos anos 2010. SGP é responsável por trazer de volta à superfície a obra de grupos como Three 6 Mafia, chegando aos mais jovens através de sua própria música e de coletivos como A$AP Mob, que foi diretamente influenciado pelo Raider Klan com acusações até mesmo de plágio. A vibe gótica de Trappers como Lil Uzi Vert e XXXTentacion também tem influência de SGP, que marca o início do que ficou posteriormente conhecido como “soundcloud Rap”.

Future – DS2 (2015)

Na metade dessa década, o Trap passou a experimentar mais com as vozes e melodias. O triplet flow, ouvido pelas primeiras vezes nos anos 1990 através de artistas de Memphis como Lil YO na faixa “Creepin’” e Lord Infamous em “Where Da Bud” fora atualizado. “Nos vocais, a característica mais evidente é da rítmica tercinada no flow. Isso é, quando três notas ocupam um espaço que geralmente seria preenchido por duas ou quatro notas” – destaca Ubora Jun. O disco DS2 (2015) de Future é essencial para entender esse movimento, uma vez que a sua impostação de voz balbuciada é parte determinante na estética do que veio a se tornar o Trap na segunda metade da década de 2010. “A marca do DS2 já está no nome, o Dirty Sprite (lean), que já remete a sonoridade do álbum e do que toca tanto nas ruas quanto nas boates de strip. Também tem o significado de “espírito sujo”, que condiz com a lírica do Future comemorando o sucesso comercial do disco Honest (2014) e as sucessoras mixtapes, ao mesmo tempo em que mostra que ele não estava arrependido da situação de divórcio com a Ciara em que ele saiu como vilão. DS2 é Future confrontando essa melancolia com o sucesso” – comenta Victor Severiano, editor do Genius Brasil. Segundo o Trapper Delatorvi, Future é superior a todos da sua geração pela somatória entre mercado e musicalidade. “Foi o cara que eu ouvi e quis parecer […] e a gente não pode esquecer de quem construiu esses pilares, como Soulja Boy e Lil Wayne, que trouxeram essa atmosfera”, adiciona o artista.

Young Dolph – King of Memphis (2016)

Apesar de Young Dolph não figurar com frequência nas listas de Trap, o seu disco de estreia merece o espaço. Justamente em um momento de contaminação da música Pop por artistas do sub-gênero, Dolph apresenta uma roupagem diferente para o Trap contemporâneo em contraponto as tendências que indústria absorveu. “Caiu esse mito, essa glamourização do Trap como a trilha sonora do universo das drogas. O Trap agora é uma cultura pop” – enfatiza o rapper Vandal. Segundo ele, King of Memphis (2016) tem uma relação extremamente verdadeira com as ruas e os beats utilizados flertam muito com a essência do Trap quando eclodiu o conflito entre Jeezy e Gucci Mane. Assim, o disco de Dolph é um ponto fora da curva nessa segunda metade da década e foge do estereótipo que se criou sobre o sub-gênero, colaborando para a compreensão de que existem diversas maneiras de se fazer Trap na contemporaneidade. Nesse mesmo processo de Young Dolph, Vandal ainda cita: “nomes como La Bella Luna, Makonnen Tafari – o MC que melhor sabe usar autotune no Brasil – os discos da coletânea UGangue e nordestinos que estavam fazendo Trap há anos e não sofreram essa glamourização de que ‘saiu do crime e foi pra música’”.

Young Thug – Jeffery (2016)

Nascido em Atlanta, o rapper Young Thug iniciou sua carreira no início dessa década com a série de mixtapes chamada Slime Season e outras que figuraram no Top 10 nas paradas no Estados Unidos, como Jeffery (2016). Com seu delivery característico e vocalizações com o autotune, Thugga coleciona parcerias como o “Havana” com Camila Cabello e “Heatstroke” com Calvin Harris, Pharrell Williams e Ariana Grande. Em Jeffery, ele une a estranheza vendável de Waka Flocka com a autenticidade do underground de Chief Keef para um álbum que começa provocativo já na capa: Young Thug, um homem negro, de vestido – questionando o status quo como é marca de sua obra. Thugga, junto com seus contemporâneos é responsável por definir o que veio a ser o Trap atual. O que marca essa transição são elementos como o abuso do auto-tune acompanhado flows melódicos muitas vezes mais cantados do que rimados e a forte presença dos ad-libs. O interessante de perceber em Thugga é o avanço que ele promove com a sua forma de pronunciar as palavras. Ele rima uma extensa quantidade de sílabas, comparável aos rappers mais líricos, mas que passam batido devido a estética que ele imprime, que por vezes combina as palavras ou não pronuncia sílabas atônicas. Há também a inclusão de algumas influências dançantes de Dub e Reggae como nas músicas “Wyclef Jean” e “Swizz Beatz”.

Migos – Culture (2017)

Os três primos do Migos tiveram uma ascensão rápida. Após lançarem sua primeira mixtape, logo chamaram a atenção de Coach K., ex-empresário de Gucci Mane que rapidamente assinou com o trio. O caça-talentos da Quality Control conseguiu emplacar o hit “Versace” (produzido por Zaytoven) em uma rádio de Atlanta e fez chegar em Drake, que incluiu um remix da canção em seu disco Nothing Was The Same (2013). O Migos continuou lançando mixtapes e fazendo barulho no nicho do Trap até que no início de 2017 a colaboração com Lil Uzi Vert, “Bad & Boujee”, atingiu o topo da Billboard Hot 100, logo antes do lançamento do primeiro álbum do trio: Culture (2017). O disco estreou no número um na Billboard 200 e é como um mexidão do Rap contemporâneo: todos os elementos que o definem estão presentes e saturados, jogados na cara do ouvinte. “A questão da própria mixagem nos ad-libs utilizando muito reverb… Migos e Travis Scott foram caras que marcaram muito o ano de 2017”, adiciona Raonir Braz, dono do hit “Sem Placas” em parceria com Matuê.

Playboi Carti – Die Lit (2018)

Apadrinhado pela A$AP Mob ao se mudar de Atlanta para Nova York em 2015, Playboi Carti se tornou um dos principais nomes do Trap contemporâneo. Em seu álbum de estreia, o Die Lit (2018) ele foi capaz de unir experimentações a um projeto de alto sucesso comercial. O disco figurou no Top 3 da Billboard e teve participação de Nicki Minaj, Young Thug, Skepta, Lil Uzi Vert, Travis Scott, Chief Keef e outros. O trampo de Carti leva os traços do Trap a um nível minimalista. A primeira audição é difícil de digerir pois a produção por vezes se inclina em ruídos aleatórios, as rimas (quando existem) são muito espaçadas e os ad-libs, geralmente em segundo plano, aqui saltam tanto quanto a voz principal. É o puro-suco do “millenial Trap”, do contemporâneo superficial. Carti expõe essa superficialidade nos mostrando que não é preciso ser um bom rapper para fazer boa música Trap e isso é conflitante, especialmente para quem vem de outras escolas mais comprometidas com o lirismo.

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