O choro silencioso de James Hill

Tecladista do BADBADNOTGOOD fala sobre a estreia do projeto Local Talent, “Higienópolis”, disco inspirado na, segundo ele, montanha-russa de emoções do bairro paulistano

Loading

A região onde hoje é Higienópolis, na zona central de São Paulo, foi loteada para a elite paulistana durante o fim do século 19. Devido ao rápido desenvolvimento econômico, que catalisou a chegada de saneamento básico e de água tratada, somado à altitude – que evitava a ocorrência de enchentes –, o distrito foi pouco afetado por doenças e pragas, sendo batizado de “cidade da higiene”. A presença de classes sociais mais abastadas também repercutiu no estilo arquitetônico do local, além de propiciar a criação de importantes instituições culturais. Hoje, apesar de continuar sendo uma região nobre, que conserva tais heranças, o bairro tem ruas habitadas por famílias que vivem na precariedade e transpira a disparidade social observada em muitas outras regiões da capital.

A beleza e as diversas contradições do bairro serviram de inspiração para o canadense James Hill dar vida a Higienópolis (2019), disco de estreia de seu projeto Local Talent. O pianista de Jazz tem ocupado o lugar de Matty Tavares nas últimas tours do grupo BADBADNOTGOOD e passou pelo Brasil no show de novembro de 2019, com Arthur Verocai, quando ficou hospedado em Higienópolis e compôs as canções. Na volta a Toronto, terra-natal dos integrantes de ambos os grupos, ele as gravou junto aos grandes amigos Ian Wright (bateria) e Rich Brown (baixo) e, em menos de dois meses, no dia 20 de dezembro, o álbum foi lançado.

Da sensação de movimento transmitida pela faixa-título, alternando entre a emoção e a tensão em “Silent Cry” e “Tundra”, até chegar à viajante “Blue Rainbow”, a sonoridade alcançada por Hill nas sete faixas se distancia e, ao mesmo tempo, está muito ligada ao Jazz moderno e elétrico de seus companheiros do BBNG.

Em entrevista ao Monkeybuzz, o pianista explica que a intenção do projeto é mostrar ao mundo o talento de grandes músicos que fazem parte de sua trajetória – vindos de Toronto, como Ian e Rich, ou de outros lugares do globo. James também falou sobre suas maiores referências no Jazz, a relação com o BBNG e a conexão emocional com a música brasileira e principalmente com São Paulo – lugar onde nasceu sua namorada.

 

James, como o piano e o jazz apareceram na sua vida? 

Foi bem cedo, por volta dos seis anos de idade, mas eu rapidamente desisti porque não gostava de ter aulas e que me falassem o que tocar. Gastava um tempo nele ocasionalmente, mas não rolou até meus últimos anos do Ensino Médio, com uns 17 anos, quando eu fui formalmente introduzido ao Jazz por meu professor de música, e me deslumbrei com os sons e capacidades existentes. Então, fiquei obcecado em tocar Jazz no piano e fui tentando me sentir livre e capaz de tocar no instrumento o que estava ouvindo nesses ótimos discos.

Como descreve seus métodos de composição e produção? 

A inspiração parece apenas vir, geralmente engatilhada por algum tipo de emoção ou anseio. À medida em que desenvolvo a ideia, ela tende a crescer e virar uma bola de neve e mais ideias se ramificam dessa grande ideia e, antes de me dar conta, tenho uma boa coleção de rascunhos de composições. Depois vem a difícil tarefa de organizar cada composição em algo completo, coerente e de valor. Para a produção, eu geralmente tento soar como meus álbuns favoritos. Eu vou tentar identificar o que faz esses álbuns soarem tão bem, depois empresto essas ideias para meu próprio trabalho.

Quais são suas maiores referências na música? 

No piano, as lindas improvisações de Lennie Tristano; o toque e articulação de Glenn Gould e Martha Argerich; as composições de Schumann e Brahm. Chico Buarque para a atmosfera emocional e Gal Costa para boas vibrações psicodélicas. Para estética de produção, talvez Ahmad Jamal’s Live at the Pershing. Claro que existem muitos outros, mas esses formam uma boa base do que me inspirou, ao menos, para meu último álbum.

Como você começou a tocar com o BBNG e quais são os próximos passos com o grupo? 

Aconteceu porque meu antigo roommate e amigo próximo, Matty Tavares, queria deixar de fazer tours por um tempo, então ele me perguntou se eu podia substituí-lo em um show no Ace Hotel, em Los Angeles, e eu topei. Também já conhecia os outros caras da banda muito bem, da Universidade Humber de Toronto. Alex e eu costumávamos improvisar todo dia. O mesmo vale para o Chester e Ian Wright (o baterista em Higienópolis). Nós três fazíamos jams toda segunda-feira depois de uma de nossas aulas. Chester estava tocando muito contrabaixo naquela época. Leland e eu fomos de uma banda chamada The Elusive Casual, uns dois anos atrás, e fazíamos shows regularmente em Toronto. Então entrar na banda foi muito fácil, porque éramos todos amigos.

Vocês tocaram com o Arthur Verocai na última performance em São Paulo. Como foi essa experiência para você? 

Foi incrível. Eu amei conhecer Arthur Verocai, seu filho Ricardo, e a banda toda. Estava absolutamente deslumbrado pela qualidade da banda. Todos os solistas foram incrivelmente inspiradores, e me senti muito grato por fazer parte disso. Há tantos talentos atuais no Brasil que não conheço. Quero voltar logo para improvisar e talvez gravar com alguns dos colegas de banda de Verocai.

Que outros artistas brasileiros – antigos ou contemporâneos – influenciam sua composição e produção? 

Mencionei o Chico Buarque, especialmente seu álbum Construção (1971), que tem sido uma grande inspiração para mim. Verocai definitivamente inspirou o modo como componho e arranjo música para banda. Outros artistas que têm influência permanente em mim pelos últimos anos são Gal Costa, Jorge Ben, Erasmo Carlos, Edu Lobo, Milton Nascimento, Nara Leão, Baden Powell e Tenório Júnior. Acho que, no geral, eu me atraio por música brasileira de um ponto de vista mais emocional do que técnico – por exemplo, composição, produção, etc. Para mim tem algo de exótico sobre o som da música do Brasil. Ela me leva para um lugar que me esforço para chegar com minha própria música. Não sei como colocar em termos técnicos de uma forma melhor. Em segundo lugar, a estética e a produção dos discos brasileiros dos anos 1960 e 1970 definitivamente tiveram impacto na produção de Higienópolis. Inconscientemente me esforcei para que ele soasse quente e granulado como muitos álbuns daquela época. É definitivamente um som que gosto.

Como criou a ideia do Local Talent? 

Gosto muito da imprecisão, em alguns casos, porque ele ela permite que uma grande mudança aconteça sem trair a identidade. Escolhi o nome cômico Local Talent, porque o projeto foi planejado para jogar os holofotes nas pessoas imensamente talentosas que me circundam todos os dias. O primeiro álbum é um trio com Rich Brown e Ian Wright. Eu já queria juntar todos nós em um disco antes e estou muito feliz por finalmente ter acontecido. Simplesmente quis expor a grandiosidade daqueles dois indivíduos por meio de uma plataforma musical criada por mim, achei que isso estava faltando no mundo. O título foi planejado, no entanto, para permitir que outros se envolvam no futuro, outras pessoas talentosas aqui de Toronto, e claro, de outras partes do mundo. O próximo disco, no qual já estou trabalhando, terá Rich, Ian de novo e outras pessoas performando composições que escrevi.

Qual o conceito do álbum? 

O conceito é, como mencionei acima, criar uma plataforma aventureira para esse trio poder dançar, e manifestar, por meio da música, minha experiência emocional vivenciada em Higienópolis.

Onde conheceu Ian Wright e Rich Brown? Como é fazer música com eles? 

Eu e Ian nos conhecemos quando éramos estudantes na Humber. Nos conectamos imediatamente e terminamos vivendo juntos enquanto estávamos na faculdade e fizemos dois álbuns e um single com um projeto nosso chamado Autobahn Trio. Ele realmente me abriu para as possibilidades rítmicas da música. Desde então, somos grande amigos e frequentemente me refiro a ele como minha alma gêmea musical, se é que isso existe! Também conheci Rich na Humber, apesar de ele dar aula, não estudar. Costumava ir a muitos shows dele em Toronto e me apaixonei por seu estilo de tocar e sua sonoridade. Então, me senti muito honrado quando Rich nos chamou para tocar na banda ao vivo de um de seus projetos, o Rich Brown and the Abeng (com Kevin Turcotte e Luis Deniz). Foi uma boa época tocando juntos e eu realmente senti uma sinergia entre nós três. Rapidamente entendi que precisava escrever um disco para o trio.

Como você descreve o som do Local Talent? Como ele se diferencia do som do BBNG? 

Não tenho muita certeza de como ele se diferencia, para dizer a verdade (risos). Mas definitivamente é diferente. Muitas das coisas que aprendi tocando com o BBNG trouxe para o Higienópolis. Por exemplo, sintetizadores são um grande componente do disco, algo do qual me tornei adepto a usar tocando e criando com o BBNG. Acho que as duas bandas estão intrinsecamente ligadas, mas não é fácil descrever como.

Que sentimentos e experiências você teve em Higienópolis enquanto esteve aqui? 

De modo geral, posso dizer que os aspectos emocionais desse álbum foram muito inspirados pelas experiências que tive em São Paulo no geral. No entanto, estava em Higienópolis o tempo todo, então começava todos os meus dias naquele local da cidade, e acredito que a música necessariamente manifesta o lugar em que foi escrita. Assim, escolhi dar o nome de Higienópolis, que agora tem grande significado na minha memória. E também, nos últimos dois anos… tenho família no bairro, então sinto que estou realmente começando a me identificar com a cidade e as pessoas de lá. Higienópolis é um ótimo lugar para se estar. Tão perto da Avenida Paulista, de muitos centros culturais, museus e galerias. Essa última, em particular, quando estava compondo o disco do Local Talent, foi minha segunda vez no Brasil. Eu estava realmente impressionado pela ideia de como uma cidade desenvolvida pode ser tão incrível, de um ponto de vista urbano e arquitetônico, ainda que encare um grau tão alto de pobreza e, consequentemente, de crime. Essa consciência definitivamente tem seu papel na criação do álbum. Em um momento eu estava admirado por algo magnífico e criativo, e no outro estava destruído por ver algum tipo de grande injustiça. De modo geral, minhas emoções estavam em uma montanha-russa enquanto estive lá.

Pode falar sobre o que acha de cada música do disco? Há alguma história improvável ou engraçada sobre alguma delas? 

“Tundra” foi difícil de juntar. Quase desisti dela, mas meu amigo Michael Fong, que também foi engenheiro de mixagem do álbum, comprou um sintetizador Yamaha CS-50 durante as sessões de mixagem e felizmente cheguei ao gancho da melodia enquanto improvisava com ele. Então, nós gravamos esse sintetizador e a música saiu, de alguma forma. Agora é uma das minhas favoritas!

Você se lembra de alguma situação em particular presenciada em São Paulo que tenha inspirado alguma das faixas do disco? 

A primeira faixa foi inspirada quase totalmente pela vista da janela do 11º andar do apartamento em que estava hospedado em Higienópolis. É só uma vista infinita de estruturas cinzas e beges, e é lindo. A parte do piano meio que me veio enquanto estava sentado, olhando para fora da janela. Enquanto estava em São Paulo, visitei a Avenida Paulista todo domingo, para caminhar e ver o que as pessoas estavam fazendo. Eu amo como o clima de São Paulo é temperado o bastante para permitir que haja domingos para pedestres o ano todo. Temos isso em Toronto por dois meses do ano, mas o clima não permite muito mais do que isso. Lembro de me sentir muito otimista em São Paulo, por conta da grande exposição à vida e ao sol. Esse otimismo contribuiu muito com a experiência de minha estadia na cidade e eu tendo a compor melhor nessas situações.

Você sempre faz música inspirada por visuais? Como acontece esse processo?

Quase toda música que eu faço é inspirada por visuais. Não posso deixar de me emocionar pelo que vejo. Às vezes, não vejo nada, mas ainda assim acabo inventando meus próprios visuais na minha cabeça. Eu gosto muito de artes visuais, filmes e dança. Com frequência imagino cenas tipo as do Studio Ghibli, do Miyazaki, enquanto toco. Apenas ajuda a me expressar para imaginar coisas, ainda que não tenha nada para dizer sobre aquilo.

Qual a faixa que mais representa o álbum para você? 

Provavelmente “Silent Cry”. É muito cheia de emoção e acho que o tempo e a performance foram muito legais. Dito isso, gosto muito da “Higienópolis”, porque me lembra, mais que outras, do tempo que estive em São Paulo. Algo da melodia me remete à paisagem infinita de edifícios cinzas. Por curiosidade, escutei “Blue Rainbow” mais do que qualquer outra faixa, porque amo o solo do Rich e a produção. Me emociona da melhor maneira possível.

Quem fez a produção? Pode nos dar mais detalhes de como foi o processo?

Eu tinha a visão da maior parte da produção antes mesmo de gravar o disco. Dito isso, muitas ideias ótimas de produção vieram de Michael Fong, que mixou o álbum, e trabalhamos juntos para trazer minha visão à vida. Ele tem bons equipamentos e habilidades para explorar o mundo sônico da pós-produção.

Qual a ideia da capa do disco? 

Desde o comecinho queria uma pintura de Rajni Perera, uma artista de Toronto, na capa. Me conecto muito com o trabalho dela e sinto que a filosofia por trás dele tem tudo a ver com a sonoridade do álbum. Acabamos usando uma pintura pré-existente, das três figuras dançando, e então eu e minha namorada, também designer gráfica e artista, a transformamos nessa capa. O produto final é bem diferente da pintura original da Rajni e estou muito feliz com o que acabou se tornando. Ela e minha namorada Klara Yang realmente excederam minha visão dando vida à capa de uma forma muito criativa.

Quais são seus próximos planos com o Local Talent? Deve tocar no Brasil em 2020? 

Espero muito vir ao Brasil em 2020! Na verdade, irei em fevereiro apenas para visitar e talvez escrever mais um pouco e ver mais arte. Mas, sim, tenho planos de trazer Local Talent para alguns shows, se tudo der certo. Queria muito construir uma audiência no país e voltar com a maior frequência possível.

Loading

ARTISTA: Local Talent

Autor: