O fantástico e estranho quebra-cabeça do Hiatus Kaiyote

Paul Bender, baixista da banda australiana, fala sobre as inspirações para “Mood Valiant”, relembra a emocionante parceria com Verocai e conta como é realizar o sonho de fazer parte da Brainfeeder

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Fotos: Tré Coch

Há algo de científico por trás da música do Hiatus Kaiyote. Cheia de elementos sonoros que se ativam quando entram em contato, o som da banda australiana é uma harmonização sabores – como vinhos que expandem sua potência quando se aliam a ingredientes específicos. Existem vários fatores determinantes para que um vinho obtenha sua melhor performance e ganhe notas especiais, um dos principais é o tempo. No caso da banda formada por Nai Palm (vocalista e guitarrista), Perrin Moss (baterista e percussionista), Simon Mavin (tecladista) e Paul Bender (baixista), são 10 anos de refinamento para chegar à acidez perfeita do novo álbum Mood Valiant, terceiro trabalho do quarteto que não gosta e nem tem um rótulo definitivo. É uma mistura alucinante entre Neo Soul, Jazz, R&B, Bossa Nova, além de toques experimentais e eletrônicos, capitaneados pela marcante voz de Nai Palm.

Lançado no fim de junho, Mood Valiant é o primeiro trabalho da banda que sai pela importante gravadora Brainfeeder, fundada por um dos nomes mais inventivos da música recente: Flying Lotus. O aguardado álbum chega seis anos depois de Choose Your Weapon, e, nesse meio tempo, os integrantes passaram por momentos de celebração e angústia. Parte importante dessas histórias vem da difícil experiência vivida por Nai, que, no fim de 2018, comunicou pelas redes sociais que enfrentava um câncer de mama, na época aos 29 anos. Recentemente, a cantora contou que, em 2020, passou por uma mastectomia. Nai também falou em entrevistas sobre a perda de um fiel companheiro de mais de 10 anos, seu passarinho Charlie e, como todos nós, passou pela pandemia dentro de casa – ou melhor, no estúdio de Paul.

Depois de duas indicações ao Grammy, turnês pelo mundo e trechos sampleados em faixas de gigantes como Kendrick Lamar, Drake e The Carters (Beyoncé e Jay-Z), o Hiatus Kaiyote respirou e atingiu um equilíbrio contagiante no novo disco. Canções como “Chilvary Is Not Dead”, inspirada no mundo animal para falar de amor, a viciante “Red Room” e a matemática “All The Words We Don’t Say” são alguns dos destaques do repertório, além de “Get Sun”, encontro especialíssimo com Arthur Verocai. Como vinho branco gelado e frutas vermelhas.

Soar como uma jam session e ter letras “esquisitas” pode parecer simples, mas aqui a ciência é exata. Muito por conta de quatro exímios músicos e infindáveis horas de ensaios e estúdio. Para saber mais a respeito dessa bagunça cirúrgica realizada pelo Hiatus Kaiyote, conversei com o baixista Paul Bender.

 


O novo álbum me passou a sensação de flutuar. Até meio veio à mente o título do álbum do Spiritualized, Ladies and Gentlemen We Are Floating In Space. O vídeo de “Get Sun” é todo uma brincadeira no espaço. Fiquei pensando se os mistérios do universo e essa relação humano X não humano são temas que inspiraram vocês…

De certa forma, sim. A vida como um ser humano é um pouco misteriosa. É sempre confuso ser um humano no planeta Terra. Acho que às vezes podemos confundir as coisas. Nós sempre tentamos expressar coisas diferentes em nossa música, meio que ir além… Sabe, nós sempre tentamos expressar as coisas em um “plano múltiplo”. As vezes nós escrevemos músicas sobre coisas bem bobas tipo o (videogame) Atari, mas acho que neste álbum, todos nós estávamos passando por uma parada diferente, algumas coisas da vida que são muito difíceis e desafiadoras. Entre Choose Your Weapon e esse novo álbum. Nós nunca fomos aquele tipo de banda que queria fazer um álbum “negativo” mesmo conhecendo coisas tristes e dores difíceis. Mas penso sempre há uma beleza que você conhece superando as dificuldades que trazem dor e desgosto, como mortes e perdas. Todas essas coisas são apenas a poesia da vida, então, é, eu acho que tem muitas coisas importantes que passamos no álbum. E nosso novo disco vai ser sobre baladas, beber em garrafas, ficar chapado, tipo um álbum de balada do Hiatus Kaioyote (risos).

E o título Mood Valiant amarra essa ideia, certo?

Sim, quando a Nai nos disse o título… Acho que não era na época em que começamos, é, na real, não tinha um nome. Provavelmente o título veio na metade do álbum. Mas assim que aparece um bom título com o qual você se sente conectado e todos gostam e se sentem representados, é uma espécie de empurrão que te leva para o que o álbum acabou sendo. Tipo, qual música deveria estar neste álbum? E você procura no álbum o que ele está tentando expressar, sabe? Como seria amarrar Mood Valiant no contexto dessa faixa? Acho que esse título meio que expressa um senso de dualidade: você passa pelos altos e baixos e é sempre uma flutuação em direção à dualidade. Entre os dois estados em que todos nós estamos transitando o tempo todo. Todos nós estamos oscilando de maneiras diferentes entre ser positivo e negativo.

“É um trabalho denso de quatro pessoas que tentam ter todas suas ideias lá. Às vezes acontece de forma natural e descontraída e outras vezes é como um estranho quebra-cabeça. Se a música começa aqui e vai ali e você viaja para dimensões completamente diferentes, pode ser um quebra-cabeça difícil de decifrar para que soe bem. Mas se é isso que a música está pedindo… Como fazer essa ilusão parecer real emocionalmente?”

Eu fiquei curiosa para entender um pouco sobre a produção do Mood Valiant. Ele me soa mais conciso, ainda que várias coisas estejam acontecendo ao mesmo tempo…

Sim. Bom, acho que foi como definir as cores com as quais queríamos brincar neste álbum, que pareciam fazer parte do que estávamos passando e sentindo. Mesmo agora, que brincamos com um monte de técnicas de produção diferentes – do muito orgânico e ao vivo para muito eletrônico – a gente definitivamente estava indo mais em direção ao orgânico e teria achado estranho colocar algo puramente eletrônicos nesse disco, meio “eletronicamente” produzido. Mesmo que existam coisas, tipo, elementos bem crus, e algumas coisas que soam eletrônicas. Tudo precisava estar muito harmoniosamente ligado aos elementos orgânicos. Não queríamos fazer músicas que fossem muito “digitais” ou que soassem muito destacadas, marcando que vinham de um universo completamente diferente. Obviamente em “Tawk Tomahawk” nós apenas brincamos com coisas diferentes. Mesmo com todas as músicas sendo bem diferentes, nós definitivamente procuramos algum tipo de unidade.

Ainda falando sobre isso, vocês incorporam elementos mais clássicos de Soul, R&b a elementos mais modernos da música eletrônica, Hip Hop e até mesmo a parada experimental. Como vocês dosam esses elementos clássicos e modernos?

Às vezes é um desafio. Aliás, às vezes as músicas acontecem muito rapidamente, mas tem músicas que levam muito tempo, tipo, existem aquelas: “ah, essa música deveria ter isso ou deveria ter aquilo”. E honestamente às vezes leva muito tempo só por ser “ok, temos essas coisas, talvez isso deva ter mais deste sabor ou um pouco disso”. Aí é apenas tentar escolher os elementos certos que combinam bem e expressam a cor e a emoção certas. Sabe, os álbuns da Hiatus Kaiyote não são os mais fáceis de se fazer. É um trabalho complexo e denso de quatro pessoas que tentam ter todas suas ideias lá. Então é isso. Às vezes acontece de forma natural e descontraída e outras vezes é como um quebra-cabeça estranho. Se a música começa aqui e vai ali e você viaja para dimensões completamente diferentes, pode ser um quebra-cabeça difícil de decifrar para que soe bem. Mas se é isso que a música está pedindo. Como fazer essa ilusão realmente parecer real emocionalmente? Porque tem músicas que realmente parecem muito reais, como “Red Room” que é um take, basicamente escrevemos à noite no estúdio, incrivelmente rápido e foi “Então, na real, não temos mais nada pra fazer com essa música”. Mas em ‘All The Words We Don’t Say”, a introdução que queríamos era fazer soar essa coisinha que então se expande nessa criatura estranha, amorfa e derretida que está jogando seus tentáculos em volta da sua cabeça e então, sim, a música começa e depois vai para lugares diferentes. E voa em suas veias e tudo está pegando fogo. Para a gente, é tipo: “Wow! Como podemos fazer isso sem recursos visuais e apenas áudio?” é um quebra-cabeça louco às vezes, mas é o desafio em que nos colocamos, não facilitamos nossa vida. Mas vale a pena porque estamos prontos para o desafio.

Me lembro da primeira vez que eu ouvi “Get Sun” e eu amei logo de cara. Fiquei orgulhosa e feliz com o Arthur Verocai estar ganhando cada vez mais reconhecimento. Aqui no Brasil ele ainda é um nome, digamos, “cult”. Como vocês chegaram ao trabalho do Verocai? Como foi o processo de trabalhar com ele aqui no Brasil?

Acho que foi o Perrin quem apresentou, para todos na banda, o álbum de estreia dele (Arthur Verocai, de 1972) e todos nós amamos muitas músicas diferentes do Brasil, de pessoas e épocas diferentes, mas acho que esse álbum em particular foi o Perrin quem nos mostrou e todos nós amamos. Estávamos trabalhando em “Get Sun” um pouco e estava soando ótimo. Havia alguns elementos que remetiam um pouco à música brasileira – isso antes do envolvimento do Arthur. Então a Nai falou: “Talvez a gente devesse enviar algumas coisas para ele. Quem sabe ele possa fazer alguns arranjos de cordas e metais”. E não sabíamos se ele faria isso. Localizamos o Arthur e ele se interessou. Disse: “Vou escrever umas coisas. Vocês vão vir e gravar os arranjos?” e nós pensamos “merda, é muito longe”. Mas, ao mesmo tempo, lembramos de experiências passadas e quando rola uma oportunidade como essa, em que é quase épico atravessar o outro lado do mundo para isso, rolou um: “Nós temos que fazer isso”, a gente não pode ser tão idiota de fazer isso e não o encontrar e não estar lá, então parecia emocionalmente correto ir. Reservamos uma turnê de última hora pela América do Sul e depois fomos lá para conhecer o Arthur e não tínhamos a menor ideia do que ele tinha escrito, não havia uma versão demo ou qualquer coisa, foi tipo:  “Ele escreveu algo e não temos ideia”. Aí estamos no Rio de Janeiro no estúdio e pensamos “Foda-se, espero que a gente ame”, porque essa é uma missão bem grande e imagine como seria não curtir. A gente já toca de um jeito difícil uns com os outros, todos os quatro, as pessoas trazem coisas para a mesa e nós somos “Deveria ser mais assim, ou deveria ser outra coisa”. Ter alguém de fora que todos nós realmente respeitamos fazendo algo que não tínhamos ideia do que era foi meio complexo, mas ele é um gênio e tudo o que ele tinha era simplesmente lindo e enérgico e tão bom. Foi uma experiência incrível estar na sala de controle ouvindo os arranjos gravados pela primeira vez. Foi: “Nossa, que porra que tá acontecendo? Meu Deus!”. Foi emocionante e rolaram lágrimas de alegria na sala de controle. Foi tipo “é isso!”.

Tiger Lily é um livro da escritora Jodi Lynn Anderson e a faixa de abertura do álbum é “The Flight of the Tiger Lily”. Queria saber quais são as inspirações extramusicais de vocês, tipo, artes, filmes, livros, arquitetura.

Acho que somos todos muito diferentes na banda, qualquer um poderia falar sobre coisas muito diferentes que gosta e eu não posso falar por eles. Nós definitivamente trazemos energias diferentes para a banda. Mas eu gosto de coisas estranhas, gosto de música pesada e música triste pra caralho e de filmes muito abstratos e perturbadores e gosto da relação do normal e absurdo. Na real, temos gostos muito diferentes, seja no campo das artes ou na música mesmo e acabamos trazendo isso pro nosso som.

“Estamos felizes em fazer parte da Brainfeeder, é o cenário dos sonhos. Queria isso desde o primeiro álbum. É bom se sentir parte de uma comunidade muito mais criativa do que apenas estar em um monólito corporativo estranho”

(Foto:Claudia Sangiorgi Dalimore)

Vocês foram sampleados por músicos como Kendrick Lamar, Drake, Chance The Rapper, Anderson .Paak, The Carters. O que você acha dessa identificação, conexão imediata que artistas do Hip Hop tem com a música do Hiatus Kaiyote? E existe a vontade de fazer um trabalho mais definitivo com um rapper?

Possivelmente, quero dizer, quem sabe se isso aconteceria? Tipo, eu estou bem com as pessoas apenas experimentando e fazendo essas coisas, porque no final do dia é legal eles se inspirarem no que fazemos e como direcionam algumas de nossas músicas em alguns lugares, ou totalmente em uma outra coisa. Acho que, de certa forma, é mais simples para alguém pegar algo nosso e fazer suas coisas, do que realmente colaborar. No final do dia é tipo “beleza, faça o seu trabalho com isso”. Nós definitivamente pensamos sobre isso, mas seria estranho encontrar um rapper que fosse na mesma vibe, tipo, coisas líricas que se combinariam com a forma que a Nai se expressa. As letras dela são “selvagens” pra caralho e sobre paradas estranhas colocadas juntas de uma forma abstrata e poderia não funcionar com um MC. Mas um rapper que todos nós sempre quisemos fazer algo seria o fucking MF DOOM, mas, obviamente, ele faleceu, R.I.P. MF DOOM … ele era o cara, seu senso de humor, a maneira de colocar isso em palavras, ele era tão único e legal, mas a oportunidade passou, então…Mas nós amamos o MF DOOM.

Falando sobre gravadoras. Como foi o primeiro contato entre a banda e a Brainfeeder? E como ela é uma gravadora incrível com alguns dos melhores músicos do mundo, quero saber se vocês têm contato com os outros artistas da gravadora, e se a Brainfeeder é uma “boa comunidade” para vocês compartilharem informações e música.

Honestamente, é a primeira vez que a gente está realmente animado em fazer parte de qualquer gravadora. Não sei, mas realmente sinto que era para ser, porque nós tivemos todos os tipos de interações, contatos e experiências com um monte de artistas diferentes dessa gravadora. O Tyler McFerri, foi uma das primeiras pessoas a realmente espalhar nossa música e mostrar para todas as pessoas, sabe? Ele foi uma grande parte da formação de um hype em torno de nós pela primeira vez, pelo boca a boca, apenas mostrando pra um monte de gente. E aí sim, nós trabalhamos com Miguel Atwood Ferguson, fizemos vários shows e festivais com Thundercat, a Nai e o Flying Lotus se conhecem há um bom tempo. Tem um monte de conexões, e às vezes conversamos pelo zoom com esses caras. O Timeboy fez turnê com a gente para fazer iluminação, design de palco e visuais para nosso primeiro álbum. Existem diferentes conexões entre as pessoas envolvidas em nossa gravadora há muito tempo. É ótimo, parece muito certo. Estamos felizes em fazer parte da Brainfeeder, é o cenário dos sonhos. Queria isso desde o primeiro álbum. É ótimo ver onde chegamos, tantas coisas boas que eles estão fazendo e é bom se sentir parte de uma comunidade muito mais criativa do que apenas fazer parte de um monólito corporativo estranho.

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