O feeling (e a fé) de Don L

Lançando o clipe do verso livre “kelefeeling”, o rapper falou sobre a produção, a arte da rima, novos mundos possíveis e o que o motiva em 2020

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Fotos: Helder Fruteira

Mais do que um dos MCs mais interessantes e originais surgidos nesse milênio no Brasil, Don L é um farol que ilumina novos caminhos do Rap nacional. Desde que, ao lado de Nego Gallo, formou o grupo Costa a Costa, o rapper criado em Fortaleza foi assegurando seu lugar como um célebre maquinista do trem do Hip Hop que escapa dos trilhos do eixo Rio-SP. A mixtape Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência de Costa a Costa (2007) apresentou o grupo cearense aos amantes de Rap do país e introduziu um rimador habilidoso, com voz marcante e apreço às possibilidades infinitas da palavra. Em pouco tempo, angariando grande admiração de seus pares e recebendo a credencial de Rapper Favorito do Seu Rapper Favorito, Don L se tornou uma referência. E ele aumentou a influência e incrementou a mística durante a década passada.

Da excelente mixtape Caro Vapor / Vida e Veneno de Don L (2013) ao magistral Roteiro Pra Aïnouz vol.3 (2017), passando por feats matadores – Funkero e Filipe Ret, Flora Matos, Emicida, Luiz Lins – e versos-rouba-cena nas séries “Poetas no Topo” e “Poesia Acústica”, Don L consolidou uma persona inconfundível e venerada. E todos os atributos que construíram essa efígie tão sólida estão presentes em “kelefeeling”, verso livre lançado hoje (08/06) junto ao clipe. No beat cheio de soul, Deryck Cabrera; na produção, Nave; na pós-produção, Luiz Café; e, no audiovisual, um time formado por uma nova safra de talentos: Helder Fruteira e Aisha Mbikilia (direção), Yuri Padre (ilustração) e Suyana Ynaya (figurino). “São pessoas que fazem parte da nova geração de artistas alinhados com o que eu represento, que é tudo que essa burguesia neocolonial brasileira não suporta”, conta Don.

E nos versos? O Don L de sempre, agora nos anos 2020. Em meio a multissilábicas, rimas ricas, alegorias e metáforas, ele realiza uma oração à deusa da criatividade. São reflexões sobre a solidão, a liberdade e a vontade de abraçar o mundo e encarar suas contradições por meio da arte. “A letra tem tudo a ver com o momento, porque fala do começo de um novo ciclo depois de tanta estrada por caminhos tortos”, aponta. Entregar canções que, dotadas de camadas diferentes e polissemias, permitem interpretações variadas é um aspecto que o acompanha desde o início – e a potência subversiva vem justamente dessa criatividade dada a dubiedades e, sobretudo, livre.

Comunista que curte carros e que quer vencer e faz amizade com fracassados, Don L é múltiplo, avesso a clichês. É discreto, mas influente e inconformado, é filosófico sem ser difuso, é político sem ser panfletário. Lembra de onde vem e não se esquece de onde quer ir. Ele carrega chagas e ensinamentos do passado e, armado de suas raízes, mira sempre para o futuro. E o futuro é incerto, distópico, perigoso. Mas ainda é um lugar que deve sempre ser imaginado, e criar a trilha para a imaginação que fomenta a estratégia é a missão de Don L, como ele comprova na entrevista a seguir.

Como tem sido sua rotina na quarentena? Como anda a sua fé frente a tudo isso?

Tô me cuidando, tentando manter a saúde mental e física, e manter a fé. Ao mesmo tempo, me mantendo conectado na causa de um novo mundo possível, e trampando no meu disco, quando a mente permite. É uma montanha-russa todos os dias.

O processo de composição do som novo começou e terminou durante a quarentena?

Na verdade, essa música já tá escrita há bastante tempo. No mínimo um ano e meio. Mas a letra tem tudo a ver com o momento, porque fala do começo de um novo ciclo depois de tanta estrada por caminhos tortos. Então peguei para terminar a parte de produção agora durante a quarentena, com o time que eu sempre quis trampar que é o que eu tô fazendo o disco.

O clipe tem uma assinatura visual muito marcante. Como rolou o contato com os videomakers e artistas visuais? Você participou do processo criativo na parte visual também?

O Helder e a Aisha vieram com algumas ideias e eu e o Maleronka, que faz direção artística geral do meu trampo comigo, fomos direcionando para o que a gente gostava mais, dentro do que já é assinatura deles. São pessoas que têm muito amor pelo que fazem e muito respeito pela arte, vivem isso de verdade. Além disso, fazem parte da nova geração de artistas alinhados com o que eu represento, que é tudo que essa burguesia neocolonial brasileira não suporta.

Na questão instrumental e – usando o termo da música – “de feeling”, quanto esse lançamento serve de aperitivo para RPA vol. 2?

Dá para considerar isso um prelúdio, uma intro da intro. Esse foi o primeiro som com essa equipe: Nave, Luiz Café, Deryck. Mas é só um verso livre.

“Existe um processo de descentralização [do Rap nacional], apesar de tímido ainda. As regiões ainda são muito desiguais no Brasil em termos econômicos e a gente ainda depende de uma cadeia produtiva regida por essa economia. A mudança real passa pela mudança dessa relação de dependência”

Você sempre demonstrou um talento e um zelo muito grande com a arte de rimar. E, nesse som, não foi diferente. Como você enxerga o “cuidado com a rima” no Rap atual? Não exatamente no sentido de discurso político/social, mas quanto ao MC encarnar a ideia de ser um artesão da palavra…

Acho que o Rap no Brasil tá num momento de encontrar caminhos e fórmulas para ser popular, para atingir grandes públicos, sem perder a essência do conteúdo, e isso tem tido um êxito muito importante. Fazer isso, mantendo um nível de excelência em tudo que envolve o ofício da rima e obras que sobrevivam ao tempo, é o próximo passo, mas ainda é raro. Envolve atributos que às vezes são contraditórios. Precisa ter vivência de rua, de favela, e, ao mesmo tempo, habilidades que têm a ver com acesso a educação e cultura, que é algo que foi negado pra maioria de nós. Talvez por isso o Rap brasileiro acabe atingindo um nível mais alto na maturidade, na maioria das vezes. Isso quando sobrevive à opressão e ao tempo, como acontecia com o samba.

Me parece uma letra que fala muito sobre inspiração – além de uma conversa com a Deusa, como você disse ao Genius. O que tem te inspirado durante a quarentena?

Eu tô lendo A Queda do Céu, do Davi Kopenawa, tentando entender outras cosmologias, se é que faz sentido tentar entender, mas é o que tá ao nosso alcance, enquanto não temos muitas opções de experenciar. Na iminência de um fim de mundo – e isso eu digo independente da pandemia –, aprender com quem já viveu o fim do seu mundo há mais de cinco séculos é uma das coisas que tem me inspirado. E aprender com quem pensa novos caminhos. Pessoas como Ailton Krenak, Sidarta Ribeiro, Eliane Brum, Jones Manoel, Ale Santos, Rene Silva, imaginando e pondo em prática novos mundos possíveis.

“Cada artista deve fazer a trilha sonora pra construção do mundo que acredita. A gente precisa trabalhar a imaginação. Trazer o feeling, o sentimento, o ingrediente principal para essa imaginação. A gente dificilmente cria a estratégia, mas cria a trilha, a imaginação que possibilita a estratégia”

“O mundo não mudou com a pandemia, a pandemia é que talvez nos traga a urgência de mudar o mundo”, você disse essa frase na entrevista ao Genius. Como você vê o papel, não apenas do Rap, mas da arte enquanto agente de mudança, especialmente no mundo da pandemia (e no Brasil do bolsonarismo)? Você acha que a arte deve, também, ser pensada estrategicamente?

Não de uma forma panfletária. Cada artista deve fazer a trilha sonora pra construção do mundo que acredita. Acho que isso resume tudo. A gente precisa trabalhar a imaginação. Meu chapa Amauri Gonzo tem repetido no podcast dele o A Fita, aquela frase de que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Eu concordo e acho que é exatamente esse o maior desafio para nós, artistas. Porque é a gente que consegue esse tipo de coisa. É a gente que consegue trazer o feeling, o sentimento, o ingrediente principal para essa imaginação. A gente dificilmente cria a estratégia, mas a gente cria a trilha, a imaginação que possibilita a estratégia.

Como você vê o processo descentralização do Rap – no imaginário popular/na mídia/nas paradas de sucesso – do Eixo Rio-SP? Você enxerga essa evolução – e o estágio atual – de que maneira?

Acho que sim, existe um processo de descentralização, apesar de tímido ainda. As regiões ainda são muito desiguais no Brasil em termos econômicos e a gente ainda depende de uma cadeia produtiva regida por essa economia. A mudança real passa pela mudança dessa relação de dependência aí. Sobre novas economias.

“Uma luta contra o mundo pra fazer parte do mundo que cê luta contra”. Essa frase sua é muito poderosa. Penso muito nela. E, agora, no meio de tantas revoltas contra a cadela do fascismo, que está sempre no cio, te pergunto: o que fazer para lutar contra o mundo sem ser cooptado por ele?

Em termos absolutos acho que é impossível. A gente vive dentro do sistema e precisa, em certo nível, alimentar ele para se alimentar. Essa é a contradição. Acho que a saída é pelo coletivo. Porque o sistema não permite soluções coletivas de verdade. A vitória que ele permite sempre é individual. Nenhuma pessoa tem poder para mudar nada nesse sistema. Só os coletivos têm. Só a ação coletiva, e a mudança da nossa forma de pensar e agir no mundo, a favor de um pensamento mais coletivo do que individual.

“Se você se encaixar demais, alguma coisa tá errada. Quer dizer que você foi moldado num nível que conseguiu encaixe numa máquina de produzir doença, desequilíbrio, desigualdade, extermínios em massa”

Aproveitando o gancho da pergunta anterior, do Don L da época do Costa a Costa, passando pelas mixtapes e discos, até chegar a “kelefeeling”: qual é o motivo (do motivo) que movimenta Don L em 2020?

O motivo do motivo é sempre o mesmo, é a inconformidade, é não querer se encaixar. Você não se encaixa e acha que esse é o problema, até o momento em que você entende que não adiantaria, mesmo que fosse possível. Te vendem uma ideia de que se encaixar no sistema é a solução para sua vida, porque os desajustados são um problema, mas os desajustados, os problemáticos, são os que podem e devem mudar o mundo, porque não existe encaixe para eles. Precisam criar algo novo. Se você se encaixar demais, alguma coisa tá errada. Quer dizer que você foi moldado num nível que conseguiu encaixe numa máquina de produzir doença, desequilíbrio, desigualdade, extermínios em massa.

Você é uma das frentes mais influentes e respeitadas do Rap Nacional. Sinto que sempre há uma enorme expectativa quanto “ao que Don L vai aprontar agora” – musical e liricamente. Uma pergunta simples: você se sente assim? É muita treta ser Don L?

Haha, é verdade, eu me sinto assim memo. E “problema com escola eu tenho mil fita”, como diz o [Mano] Brown [em “Negro Drama”], mas, em geral, vejo de forma positiva a influência.

Produtos culturais marcantes que você consumiu durante a quarentena. Discos, livros, filmes, séries…

A Queda do Céu, de Davi Kopenawa [livro de 2015]

Ideias para Adiar o Fim do Mundo, Ailton Krenak [livro de 2019]

Queen & Slim [filme de 2019 dirigido por Melina Matsoukas]

O Espírito da Intimidade, de Sobonfu Somé [livro de 1997]

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ARTISTA: Don L