No começo dos anos 2000, na periferia de Londres, surgia o grime. Com base em outros gêneros britânicos, como o UK garage e o jungle, DJs e MCs londrinos movimentavam o underground com o subgênero do hip-hop.
Com BPM acelerado, sons sintéticos e rimas marcadas e fortes, o grime se fortalece no Brasil já há alguns anos. Em 2019, o paulistano Felipe Desiderio, o Febem, lançou Running, seu álbum de estreia, com produção de Cesar Pierri, o CESRV. O produtor musical também produziu, no mesmo ano, o EP Ruas, de Fleezus, outro marco importante do grime no Brasil e que conta com outros nomes fortes no gênero, como SD9, Kbrum, 808 Luke e Sant.
Ainda em 2019, Febem, Fleezus e SD9 participaram de episódios do Brasil Grime Show, projeto carioca que começou em 2018 inspirado nos sets de grime britânicos, e cresceu exponencialmente. Outros projetos, como o álbum BRIME!, lançado em 2020, foram surgindo e incrementando ainda mais a cena do gênero no país.
Agora, o grime já vai além da região Sudeste e se faz presente em outros lugares do Brasil – exemplo dessa expansão é a cena da capital pernambucana, Recife.
Da Região Metropolitana até a capital
Em novembro de 2024, na Praça da Coimbral, em Camaragibe, região metropolitana do Recife, ANTCONSTANTINO, produtor e DJ de Duque de Caxias referência no grime nacional, fazia um “pocket set” A performance aconteceu em um bar, o Bar da Praça. Ao redor, vários outros bares, lanchonetes e uma quadra. Um concurso de fantasias de Halloween rolava em um dos estabelecimentos vizinhos. Na praça, jovens, crianças, adolescentes, adultos e idosos. No microfone ao lado de ANTCONSTANTINO, estava Rotciv, MC pernambucano nascido e criado em Tabatinga, bairro de Camaragibe.
Rotciv, ou Victor, tem 27 anos e faz música desde a adolescência. “Quando eu tinha uns 12 anos, meu pai me deu um CD de MV Bill e outro de Racionais. Foi aí que tudo começou”, lembra. No bairro onde cresceu, se aproximou mais ainda do hip-hop por conta do skate e do contato com grupos como o Pregadores do REP, criado em Tabatinga em 2002. Por volta dos 14 anos, começou a compor rap e, anos depois, se juntou a alguns amigos e criou o próprio grupo, 445 Crew – com o nome inspirado em uma linha de ônibus local.

“O lugar de onde a gente veio é o que a gente é. […] Nossa identidade artística foi lapidada em Tabatinga e muitos jovens de hoje, artistas, gravam e têm estúdios lá. É muito bom ver”, afirma o MC. Ele conta que tudo era feito com os poucos recursos que tinham, mas a dedicação e a vontade de fazer música não dependiam de dinheiro. Chegaram a gravar faixas com o microfone da webcam do computador.
Por volta de 2016, ainda no 445 Crew, ele conheceu Zoe Beats, DJ e produtor também de Camaragibe, através de amigos em comum. A identificação entre os dois se materializou em trabalhos musicais juntos e numa amizade.
Nessa época, a cena hip-hop crescia cada vez mais entre os jovens de Camaragibe. Até então, os artistas eram mais velhos, de grupos old school, como o próprio Pregadores do REP. Por conta da diferença geracional, os mais novos estavam mais abertos a outros tipos de música que fossem além do gênero, digamos, “mais tradicional”. É nisso que o encontro de Rotciv e Zoe se encaixa.
Apesar de terem se conhecido em 2016, os dois só voltaram a se conectar depois da pandemia de Covid-19. Nesse meio tempo, o 445 Crew se desfez e Rotciv teve um filho, mas nunca abandonou a arte: “Eu sempre procurei essa parada, desde pequeno. Eu sempre vi a arte próxima de mim, sempre me interessou. […] A música sempre esteve guardada dentro de mim.” Ele chegou a produzir faixas não lançadas, mas sua identificação artística só chegou depois.
“O lugar de onde a gente veio é o que a gente é. Nossa identidade artística foi lapidada em Tabatinga e muitos jovens de hoje, artistas, gravam e têm estúdios lá. É muito bom ver”
– Rotciv
Rotciv conta que, ao conhecer mais o trabalho de Zoe, com Lucas Sang, no grime, percebeu que se via mais naquele estilo, que aquilo fluia com mais naturalidade para ele. Voltou a ter contato com o produtor e, juntos, começaram a fazer uma identidade própria, lapidando a sonoridade particular do próprio Rotciv, segundo ele. “A gente teve umas duas sessões. Estávamos batendo nessa tecla de gravar uma música, mas eu estava frenético em sets de grime, porque eu via que era uma parada que era mais solta, que envolvia mais diversão, não tão tensa quanto a gravação de uma faixa. […] E é muito desafiador, porque você não sabe o beat que vem, você que tem que se adaptar”, conta.
A partir disso, eles começaram a estudar formatos de sets de grime. Foi aí que, em dezembro de 2021, surgiu o projeto destalado., criado por Zoe, com Rotciv como o MC convidado do episódio piloto.
“Se você perceber, todos os episódios são parecidos, mas cada um tem sua identidade, porque estamos sempre buscando novos pontos de acordo com cada convidado”
– Zoe Beats, sobre o destalado
“Foi um divisor de águas para a gente”, explica Rotciv. Depois disso, a dupla passou a trabalhar em novas faixas, resultando no lançamento do EP Arrecife em 2023. As influências aqui são diversas, inclusive de letras de funk. “A sonoridade desse EP pode soar até um pouco agressiva, mas é como tinha que soar. É a realidade de quem teve contato com drogas cedo, de quem teve contato com jovens sendo assassinados cedo. E você estar ali nesse meio e ter que fazer as escolhas certas – eu trouxe tudo isso para as letras. Minha intenção sempre foi essa, de retratar a realidade, de puxar os fundamentos do funk de galera, que bate certo. Não tem como você escutar funk de galera e não ver as semelhanças com o grime por exemplo, é música eletrônica underground”, diz o artista.
“Minha intenção sempre foi essa, de retratar a realidade, de puxar os fundamentos do funk de galera, que bate certo. Não tem como você escutar funk de galera e não ver as semelhanças com o grime. É música eletrônica underground”
– Rotciv
Ele explica que enxerga o EP como um resultado de anos de trabalho, o momento em que ele realmente se encontrou artisticamente. A consolidação e materialização da sua identidade. Isso é visível em trabalhos mais recentes, como no single ÉAQUI!, de Rotciv, MGD Ruuf e Zoe Beats, lançado em 2024.
“Why are you calling me, Zoe?”

Eduardo Ferreira Filho, conhecido como Zoe Beats, também veio de Camaragibe (PE) – especificamente da área de Vera Cruz, no bairro Aldeia dos Camarás. Começou a fazer música ainda criança, aos seis anos de idade, quando aprendeu a tocar bateria. Os pais incentivaram a veia artística desde sempre. A mãe, que cantava na igreja, foi uma grande influência e, por conta disso, ele teve acesso a instrumentos e equipamentos musicais bem cedo. O sonho de Eduardinho, como era chamado, era ser baterista profissional, mas a vida o levou para outros caminhos. Porém, a relação com a arte e com a música permaneceram. Hoje, aos 27 anos, Zoe é produtor e DJ, além de trabalhar com vídeo, design e fotografia.
Foi a curiosidade que o levou à produção musical de forma autodidata, ainda na adolescência, a partir de ferramentas como FL Studio e Audacity. Assim como Rotciv, ele começou a fazer música no hip-hop, produzindo beats para o próprio cunhado, que fazia parte de um grupo de rap gospel chamado Mateus 16. Mas Zoe só engatou de verdade no ofício quando, aos 17 anos, ganhou de sua avó Nira o primeiro kit de áudio, com microfone, fone de ouvido e mais. Em 2016, criou oficialmente a Vinew Records, gravadora musical focada em artistas independentes da Zona Norte do Recife, como Lucas Sang, parceria que marcou a carreira de Zoe e a cena do grime na capital pernambucana.
“Ele [Sang] foi uma grande ponte para mim. Ele era uma das cabeças da Batalha do Terminal, no bairro de Água Fria, e fazíamos produções em estúdio como prêmio para os vencedores, por exemplo. […] Através dele, muitos artistas, principalmente da Zona Norte, gravaram comigo”, conta Zoe.
Com o crescimento da Vinew Records, o produtor conseguiu montar um pequeno estúdio. “Apesar de existirem outros estúdios na época, nem todos faziam o que a gente fazia. A gente sempre postava nas redes sociais fotos e informações dos artistas que iam gravar, para fazer a mídia para eles, mesmo. Também tinha um quadro dentro do canal do YouTube da Vinew chamado Free Sessions, que a gente fazia um audiovisual gravando a música mesmo, como se fosse um clipe. […] Eu jogava todo meu dinheiro, energias e vontades, tudo que dava”, explica.
Zoe fazia todas as etapas do trabalho: produção musical, fotos, captação de vídeos, iluminação. “Sempre fui muito curioso”. Foi essa curiosidade, somada à necessidade e, infelizmente, à escassez de recursos, que fez com que ele aprendesse a ser multifunções. “Virei algumas noites sem dormir estudando. Fiquei acostumado a virar a noite porque, quando era mais novo, ficava acordado com minha vó Nira, ela fazendo crochê na sala, lendo a Bíblia e eu conversando com ela até duas, três da manhã. Acabei aplicando esse costume no meu trabalho e ficava horas lendo, vendo vídeos, fazendo muita música ruim, muita música boa, praticando. Continuo fazendo isso até hoje”, conta o produtor.
Conhecendo a música eletrônica
Em 2018, Zoe se mudou para o Rio de Janeiro. Justamente nessa época, entre 2018 e 2019, artistas brasileiros de grime estavam ganhando bastante força em São Paulo e no Rio de Janeiro. Apesar disso, ainda não foi aí que a música eletrônica bateu nas suas produções. Durante sua estadia, Zoe dividiu a moradia com o amigo Sagaz das Atalaias, MC de Aracaju (SE). “No Rio, eu evoluí muito musicalmente, também por conta de Sagaz. A gente fazia muita música no tempo que a gente tinha pra fazer, virava madrugada. Às vezes, a gente fazia três, quatro músicas num dia e não gostava de nenhuma, ia errando e acertando”. Esse período gerou uma mixtape, O Ano Mais Violento, no começo de 2020.
Neste mesmo ano, Zoe voltou para Pernambuco. Ia apenas visitar a família, porém, a pandemia de Covid-19 começou e ele acabou ficando no estado de vez. “Na pandemia, eu ainda estava morando na casa dos meus pais e, com a quarentena, o que eu fazia no tempo que tinha era produzir e estudar música. Caía no estúdio 22h, saía 6h da manhã do outro dia, praticamente todos os dias”. Por conta da limitação causada pela quarentena, Zoe se reconectou com Lucas Sang e, juntos, começaram a gravar diversas faixas. Foi justamente nesse período de evolução musical e pesquisa que o produtor começou a fazer mais música eletrônica, chegando ao grime.
“Fiquei acostumado a virar a noite. Quando era mais novo, ficava acordado com minha vó Nira – ela fazendo crochê na sala, lendo a Bíblia e eu conversando com ela até 2, 3 da manhã. Apliquei esse costume no meu trabalho e ficava horas lendo, vendo vídeos, fazendo muita música ruim, muita música boa, praticando. Continuo fazendo isso até hoje”
– Zoe Beats
“Eu e Sang, a gente fazia muito rap, boom bap, trap, mas, começamos a perceber que não nos sentíamos tão confortáveis. A música eletrônica chegou numa época em que a gente estava sofrendo, estávamos perdidos musicalmente. Foi de uma forma sutil. Já tinha Brasil Grime Sow, mas a gente ainda não sacava tanto, daí começamos a estudar esse outro lado da música. Começamos a buscar outras referências, saímos mais das referências norte-americanas e conhecemos mais Skepta, entre outros. Foi quando aprendemos o que era grime e nos identificamos muito com os beats, a musicalidade. Fluiu de forma natural”, conta.
Dessa parceria, nasceu o EP ¼ em 2021. “Hoje, com o conhecimento de grime que eu adquiri depois, percebi que muitos elementos musicais que usamos nesse projeto são clássicos do gênero e a gente nem sabia na época, porque fomos produzindo intuitivamente e de forma que fluiu naturalmente, de forma original nossa”, explica Zoe. Porém, o projeto não foi recebido pelo público local de hip-hop de forma tão positiva. “Como era algo novo aqui, muita gente ignorou. O bagulho foi mais bem visto para o lado do Sudeste mesmo. Acabou caindo na graça de SD9, ANTCONSTANTINO… Foi uma virada de chave. E me fez entender que, realmente, a gente estava fazendo algo real e diferenciado, de verdade. Foi quando o grime assumiu de vez minha vida”, complementa.
Ainda em 2021, Zoe Beats e Lucas Sang lançaram juntos o EP Vvivence. Mas, infelizmente, Sang decidiu largar a carreira musical. Por conta do fim dessa parceria, Zoe começou a estudar mais a própria sonoridade. “Foi aí que eu comecei a aprender sobre outras vertentes de eletrônica, a enxergar a música de outra maneira, além de números, percebi que era bem mais interessante construir uma carreira e realmente viver a música”, diz.
Materialização e expansão
Conhecendo os sets de grime, Zoe decidiu comprar uma controladora de DJ: “Eu via os grime sets e me via fazendo aquilo”. E começou a estudar mais. Ele explica que, com os estudos, passou a entender que um set de grime não era “só dar play”, era mais do que isso. “Um set de grime tem toda uma ideia que faz a construção da parada. Por causa disso, comecei a produzir muito e a me escutar. Percebi que, como produtor e DJ, eu precisaria me escutar mais para fazer os sets”.
Exatamente neste período, Zoe se reconectou com Rotciv e, como citado antes, nasceu o primeiro episódio do destalado, gravado com uma GoPro. Segundo ele, o projeto também não foi tão bem recebido de primeira porque muita gente achou que ele estivesse tentando “copiar” o Brasil Grime Show. “Tive que explicar para a galera que, mesmo a ideia sendo parecida e os projetos conversando, o propósito é diferente, eu queria apresentar o DJ set de outra forma.” O episódio completo foi postado no YouTube, mas foi um corte postado no Instagram que fez com que o destalado chegasse em mais pessoas. “Desde então, é algo que eu levo como meu filho”, conta ele. “Eu vi que era capaz de fazer muito mais coisas do que eu imaginava que era”.

Foi antes do terceiro episódio que aconteceu a mudança do produtor da casa dos pais, em Camaragibe, para o Centro do Recife, o que impactou diretamente em sua vida, carreira e forma de fazer arte. A vista da janela do apartamento localizado no coração da cidade, onde tudo acontece o tempo inteiro, com as luzes e prédios na linha do horizonte, definitivamente traz uma camada maior para o projeto e para o trabalho do artista no geral. Ele mesmo conta diversas vezes durante a entrevista que foi olhando, ouvindo, vivendo o Centro da cidade que as ideias surgiram.
Atualmente, o destalado conta com 10 episódios lançados e um set ao vivo, todos disponíveis no canal do YouTube de Zoe. “A partir do quarto episódio, tudo fez muito sentido completamente”, afirma, contando também que começou uma parceria audiovisual com Ronny Colors, fotógrafo e videomaker recifense. “Foi quando mudou toda essa ideia do visual, quando fui entendendo mais a ideia do que melhorar, explorar diferentes formas. Se você perceber, todos os episódios são parecidos, mas cada um tem sua identidade diferente, porque estamos sempre buscando novos pontos de acordo com cada artista convidado também”, explica o DJ.
Todos os MCs convidados são escolhidos com muito cuidado pelo produtor. “Eu tenho muita cautela, porque eu faço tudo no projeto. Sou eu que produzo todos os beats. Então sempre procuro artistas que eu me identifico e acredito no trabalho de verdade, porque também me envolve. O que eu faço tem que se encaixar com o que a pessoa faz também. […] Os episódios têm pessoas de perfis pessoais e artísticos muito diferentes, mas todos dialogam com a música que eu faço. […] Sempre estou de olho em tudo que está acontecendo na cena local”. Inclusive, alguns MCs convidados para o destalado também acabam gravando outros trabalhos com Zoe, como foi o caso de Tremsete.
Terror nenhum

“Quando eu convidei ela [Tremsete] para o nono episódio do destalado, eu sabia que ela ia amassar e foi dito e feito. Eu pensei ‘tenho que trabalhar com essa menina, sou obrigado a trabalhar com ela’, não deixei a oportunidade passar e sugeri gravar um EP”, conta Zoe. Tremsete, ou Maria, tem 16 anos e é nascida e criada no Ibura, Zona Sul do Recife. “Só faz mais ou menos um ano que eu comecei a fazer grime. Antes, escrevia e fazia rap, por influência de uma pessoa que me relacionei, que estava nesse meio musical e também porque conhecia o trabalho de muitas meninas, que faziam poesia”, conta ela. “Quando comecei a escrever, foi quando eu me encontrei. Vi que estava me encaixando nisso, ia pegando situações e lidando com elas transformando em música”. Maria diz que sempre foi muito tímida e não tinha confiança o suficiente para compartilhar seu trabalho com outras pessoas. Mas, por incentivo das amigas, começou a postar nas redes sociais e, a partir daí, recebeu um retorno positivo dos conhecidos que a acompanhavam.
Um amigo da artista, CP, a chamou para gravar algumas músicas num estúdio, localizado no próprio bairro do Ibura, na UR-1. “Era na favela mesmo que a gente fazia música, entre os becos e vielas”, diz. Ela começou a entrar mais nesse meio do rap local e a perder também a vergonha. Até que, um dia, Maria foi à Batalha da UR-1 e pediram para ela mostrar as músicas que tinha. “Fiquei apreensiva, mas comecei a mostrar e acabei indo depois para o estúdio gravar mais. E já gravei num beat de grime”, conta. A faixa a que ela se refere é “Botei As Cara”, lançada em 2023. “Eu ainda nem sabia o que era o grime, mas me identifiquei logo de cara, foi meio do nada. Demorei quatro horas no estúdio, tinha muita dificuldade, mas quando eu vi o resultado pensei ‘caramba, olha o que eu consegui fazer’. Postei no Reels e, depois disso, nunca mais parei de fazer música”, diz.
Foram as redes sociais que fizeram Trem chegar até Zoe Beats. “Zoe, para mim, já era uma referência. Na escola, eu e meus amigos víamos o destalado e a gente queria participar desde sempre”, conta Maria, destacando que o que mais chamou atenção dela foi ver outras MCs mulheres gravando no projeto, como Afroh, Raiane Margot, Vyvona e Vivendo, entre outras. “Ver as minas daqui, com as gírias daqui [de Recife], botando as caras, foi surreal. Vi que aquilo me representava. Eu sempre busco referência nas meninas daqui da cidade para poder fazer o meu corre”, explica.
“Participar do destalado abriu muitas portas para mim. Conheci Bione, que é referência minha. […] No começo, quando gravei, não gostei e nem queria assistir. Mas, quando criei coragem para ver minha participação, fiquei muito feliz com o meu trabalho ali”, diz Maria. Nesse período, ela começou a pesquisar mais sobre o grime e a se identificar cada vez mais com o gênero: “Eu me encontrei no grime”.
Depois da participação no destalado, Trem percebeu a conexão artística e musical com Zoe e aceitou a proposta do beatmaker de fazer um EP, que foi oficialmente lançado em outubro de 2024, intitulado Grimestar. O EP conta com três faixas e tem um clipe gravado, “Cola na Sul”, feat com Lety. “Eu quis chamar Lety porque ela foi uma mina que eu me aproximei na cena do rap e ela sempre me deu muito valor, me incentivou. Foi a primeira menina que eu batalhei junto”, conta. O objetivo com essa faixa especificamente, mas que também se aplica a todo seu trabalho, era exaltar as mulheres e o local de onde veio.
“Quando comecei a escrever, foi quando me encontrei. Vi que me encaixava nisso, lidava com situações transformando elas em música”
– Tremsete
Maria conta que, desde criança, sempre foi muito expressiva. Gostava de gravar vídeos falando para o YouTube, fazia paródias de músicas quando era mais nova. Com 15 anos, começou a entender que gostava de escrever e fazer música. “Até esse ponto, eu achava que não sabia fazer nada, pensava que nunca ia me encontrar”, explica.
O contato com o underground foi por conta de um amigo,que frequentava esses eventos e ouvia gêneros como rap e drill. Ela se identificou, decidiu fazer música e percebeu que era o que queria continuar fazendo. Veio o destalado, o EP, uma nova gravadora e, em novembro, a participação em uma edição do Brasil Grime Show na cidade, realizado no Quintal do Sossego. “Era meu sonho participar do BGS. […] Quando eu via as minas pulando, gritando, eu não acreditava… Diniboy colocou uma coroa na minha cabeça com as mãos e eu fiquei sem reação. Fiquei muito realizada, foi muito louco estar ali”, conta.

“Ver as minas daqui, com as gírias daqui, botando as caras, foi surreal. Vi que aquilo me representava. Sempre busco referência nas meninas daqui da cidade para poder fazer o meu corre”
– Tremsete
Maria diz que, quando recebe mensagens de outras meninas, ou é parada em algum lugar por alguma mulher dizendo que a tem como referência, percebe que é para isso que ela faz o que faz. “É aí que eu penso que não posso parar, nunca vou parar. Tenho muitos projetos na minha cabeça para exaltar cada vez mais mulheres. […] Eu quero representar o rap, o grime, o hip-hop da melhor forma possível”.
Porém, nem tudo são flores. Justamente por ser essa artista voraz, uma força da natureza que chama atenção com barras pesadas e energia forte, mesmo tão jovem, Trem conta que já escutou diversos comentários negativos vindos principalmente de homens. “Eu acho que os caras se doem muito em ver uma mulher colocando um homem no lugar dele, mostrando que mulher também pode fazer acontecer e até chegar a níveis que nenhum homem chegou ainda”, opina. Mas, apesar disso, ela diz que usa os comentários misóginos como combustível para continuar fazendo seu trabalho. “Esses caras não vão ganhar nada, vão querer vir bater e vão perder. Porque o que me importa mais é ver as mulheres se sentindo bem com meu som e é isso que está rolando”.
“Me chama de galerosa, escamosa, mais pra frente É que eu tô numa instiga, tô brilhando, é meus pingente Antes pisava descalça, já caí nesses batente Eu já tava acostumada, tiração vem de repente É melhor tu respirar, tu nunca foi meu concorrente” - “Eu Sou do Ibura” (Tremsete)

No BGS em Recife, outras MCs mulheres participaram, como Preta Chave, também da capital pernambucana. As duas estão juntas no primeiro episódio da Rádio 509.fm, outro projeto de Zoe Beats, e têm planos de novos trabalhos juntas no futuro, entre eles uma mixtape.
O Mangue e o Grime
Trem também destaca que, para ela, um dos pontos mais interessantes do grime recifense é como o sotaque se encaixa nos beats. Quando veio para Recife em novembro de 2024 com o Brasil Grime Show, Diniboy, que é do Rio de Janeiro, destacou a mesma característica.
“O grime é universal. Não importa em que lugar do planeta ele aconteça, a essência vai estar ali. […] Mas é interessante observar as particularidades de cada cultura, de cada local, a expressão vai mudar. O Brasil, por exemplo, é gigantesco. E aí a gente vê que é diferente, dentro do mesmo quadrado. Presença, forma, sotaque, tudo isso interfere”, diz Dini.

AKA AFK, MC de destaque na cena brasileira, explica como, mesmo com tantas fusões de gênero, de cultura e território, o grime consolida uma conexão poderosa durante os sets. “O grime já é misturado na cultura britânica com a jamaicana em sua origem. Daí, se encaixa na música eletrônica. E, quando chega na língua portuguesa, tem outras camadas adicionadas. Mas o grime se torna a língua universal, porque o que importa mais dentro do set é acompanhar os drops e os beats, muito mais que a própria lírica”, explica o artista paulista.
O grime não é só um gênero, é um movimento – e tudo que o torna universal faz parte disso. Surgiu na periferia, entre pessoas marginalizadas pela sociedade e isso se reflete aonde o grime chega. No Recife, no evento do Brasil Grime Show, ficou evidente a força das mulheres negras na cena local, fenômeno que cresce também em outras regiões do Brasil e do mundo.
“O grime é universal. Não importa em que lugar do planeta ele aconteça, a essência vai estar ali. Mas é interessante observar as particularidades de cada cultura e local. A expressão vai mudar. O Brasil é gigantesco. E aí a gente vê que é diferente, dentro do mesmo quadrado. Presença, forma, sotaque – tudo isso interfere”
– Diniboy (Brasil Grime Show)

Em cada cena local onde o grime finca bandeira, ele cria raízes, bebe do espaço e do que o forma. Zoe Beats conta, por exemplo, como a mudança para o Centro do Recife influenciou na sua forma de fazer música. “Foi quando eu destravei tudo. […] Viver a cidade de verdade me fez pensar muito em muita coisa, imaginar coisas, referências, mudou a forma que enxergo muitas coisas e tudo isso se reflete na minha música”.
Chico Science falava da paisagem, da vivência e da cultura recifense em suas letras o tempo todo – a sonoridade, a estética e a musicalidade do Manguebeat têm relação direta com a cidade. E o grime recifense e o Manguebeat conversam entre si de diversas maneiras. São movimentos que surgem e se fortalecem na periferia –é música feita por quem vive a cidade no seu cerne. Por quem vive a parte da cidade que não é tão mostrada turisticamente. A cidade de verdade, com seus problemas e suas belezas. Rodrigo Santos, produtor de eventos do Recife, enxerga que a cena do grime da cidade vive sua melhor fase até então. “O movimento só cresce e cada vez mais surgem novos MCs, bailes e labels que vem fazendo a diferença. O que me chama mais atenção na cena daqui é a musicalidade, que traz uma identidade autêntica, incorporando nossa cultura local de forma natural. É uma parada original, sem a necessidade de replicar o que rola nos estados do eixo RJ-SP”, explica.
Na faixa ÉAQUI!, de Zoe Beats, Rotciv e MGD Ruuf, a influência do Manguebeat é evidente. É um drum ‘n’ bass completamente recifense, do som à letra, com referências da cidade e ao próprio movimento criado por Chico Science:
“Lama na canela A torre é Malakoff Na Rua da Aurora o sol ferve mais forte Palafita em chamas Drogas com crianças Faz parte do jogo Malícia que faz a grana” - Rotciv, em “ÉAQUI!”
Zoe conta que o Manguebeat influencia não só musicalmente o seu trabalho, mas na essência do movimento. “É mais sobre a forma de como se movimentar, como agir, como propor e sugerir minha música para o público. […] Eu não quero só reproduzir a sonoridade. E eu vejo muito essa cena de grime em Recife com um potencial de se alavancar de forma bem estruturada, assim como o Manguebeat fez anos atrás. O que precisamos fazer a partir de agora é melhorar e se informar mais, porque aqui a gente faz de uma forma muito louca, muito original. É uma ‘adubada’ no gênero, do nosso jeito, de uma forma muito única”, reflete o produtor.
“O movimento só cresce e cada vez mais surgem novos MCs, bailes e labels que vêm fazendo a diferença. O que me chama mais atenção na cena daqui é a musicalidade, que traz uma identidade autêntica, incorporando a cultura local de forma natural. É uma parada original, sem a necessidade de replicar o que rola no eixo RJ-SP”
– Rodrigo Santos (festa ROTAS)
Sangue nos olhos e vontade de fazer acontecer
Efervescente, a cena do grime em Recife está mais viva do que nunca e só existe porque é movida a várias mãos. Os artistas são completamente independentes e muitos precisam conciliar a carreira musical com outros trabalhos para conseguir continuar. Rotciv é um exemplo disso. “Eu não sei explicar como consigo fazer isso, eu só faço. É um desafio enorme. […] É mágico e ao mesmo tempo frustrante. Já perdi muito tempo da minha vida com trabalho, porque você não tem tempo para viver. Quando eu trabalhava numa escala 6×1, era absurdo. Mas, ainda assim, conseguia achar um espaço de tempo para fazer música. E, olhando para tudo que já fiz, é quando penso que não posso parar de fazer arte”, conta o artista, que também trabalha como garçom e é pai de uma criança. “Graças a Deus, consigo fazer parte da vida do meu filho. E minha relação com ele, a responsabilidade e o afeto, também lapida meu lado artístico.”
Os desafios vêm de todos os lados, inclusive para produtores de eventos. Rodrigo Santos produz a festa ROTAS, focada em música eletrônica, e que, em sua última edição, trouxe ANTCONSTANTINO para o seu primeiro set em Recife, além de DJ Eram, de São Paulo. “Desde o início, a proposta do baile sempre foi de expandir as vertentes da cena eletrônica underground e, de alguma forma, fortalecer o cenário e artistas da cidade”, explica o produtor. Porém, logística e viabilização financeira ainda são obstáculos – mas, estão sendo superados. “O caminho é árduo e exige uma dedicação imensa, mas a sensação de acreditar nos projetos e colocar os bailes na rua é impagável”, completa. Rodrigo também menciona que conquistar o público não é uma tarefa fácil. “É preciso criar uma conexão verdadeira entre a proposta artística e as pessoas que consomem e estão inseridas na cena. Afinal, é essa identificação que faz os eventos deixarem de ser apenas uma festa e se tornarem um movimento cultural autêntico, que valoriza a diversidade e a representatividade”.

ANTCONSTANTINO, que esteve presente na festa ROTAS e fez um set também em Camaragibe, diz que não é talento que falta nas cidades do Brasil quando se trata de grime. O artista já viajou por vários locais, como Manaus, Salvador, Belém, entre outros, e explica que “a galera consegue desenvolver e produzir coisas muito boas, seja um evento muito bem organizado, seja um programa igual o destalado. […] Até porque tem muito trabalho no mainstream que é de baixa qualidade, enquanto tem outros, principalmente fora do eixo, que você vê e fala ‘como isso não estourou?’”. Para ele, parte do problema dessa cena ainda não ter furado tanto a bolha é a mente fechada da parte sul do país para artistas e sonoridades diferentes. “E também ter a paciência de pesquisar, de você ir além do algoritmo, porque o Brasil é muito grande e existem subculturas. Em todo lugar do Brasil, você vai achar um bagulho foda. […] Não é por falta de talento da galera de Recife ou de qualquer lugar do Brasil”, explica.
Para Recife, em comparação ao eixo RIO-SP, é ainda mais difícil romper a bolha, burlar o algoritmo do mainstream e atingir grandes públicos. Mas, também, é justamente isso que faz a cena do grime e de outras vertentes de música eletrônica da cidade serem tão únicas. Só em Recife você vai conseguir ouvir as gírias daqui, as referências ao Manguebeat, o sotaque ritmado e melódico. É onde tudo isso se movimenta junto. E, com as raízes crescendo sem parar, música boa e original floresce. É aqui.