O Intelectual Orgânico

Entenda o que aconteceu com a música Pop recente e o quanto o ex-líder dos Black Eyed Peas é responsável pela retirada da alma das canções radiofônicas

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Vocês já ouviram falar em Antonio Gramsci? É o nome do mais competente escritor marxista do século XX, provavelmente o mais inteligente e fino tradutor dos pensamentos de Marx, inseridos numa realidade de fatos e eventos que o barbudo alemão não contemplou com precisão necessária quando formulou suas teorias de economia política. Gramsci diz, entre uma vastidão de conceitos inteligentes e interessantes, que o sistema capitalista, ou melhor, a classe dominante possui figuras para a manutenção do status quo, ou seja, gente que, não necessariamente é dona dos meios de produção, mas que, através de suas ações, contribui igualmente para a manutenção da ordem dominante. Concluí há pouco que o rapper will.i.am é um intelectual orgânico e sua área de atuação é, claro, a música Pop.

A existência de um disco como Willpower, o mais recente trabalho solo deste malandro, que é o mastermind por trás do Black Eyed Peas, é a prova definitiva que will é um agente do mal em ação na indústria musical, desviando atenção, dinheiro e espaço que poderiam ser destinados e aproveitados por prováveis novos e bons artistas negros americanos. Já sabemos que eles existem, o Roots é exemplo que é possível fazer música negra nos USA do século XXI sem resvalar para a presepada vexaminosa de um Kanye West ou qualquer outro “rapper” cheio de ouros pendurados e mania de grandeza. Will é um desses caras, mas sua “versatilidade” mostra que ele é mais inteligente, mais articulado, com tendências a fazer contatos visando ampliar seu poder de contágio em outras linhas musicais. Grande exemplo disso foi a aproximação com Sergio Mendes, a ponto deste – que não é bobo e adora um tilintar de cifrões – lançar um disco com participação massiva de Will, que tem um toque de Midas em reverso (como diriam os Hollies), que tira o brilho de qualquer produção musical.

Will começou como dançarino de break na California dos anos 90. Lembrem-se que a década de 1990 contém o fim do mundo como o conhecíamos, o que proporcionou encruzilhadas estéticas e comportamentais de todos os tipos. A música Pop foi ferida de morte e, por algum tempo, ainda cambaleou por aí, para jazer no solo do olvido na década de 2000. Imagino que a existência de um grupo como o Black Eyed Peas, que Will formou em 1995, seja um dos grandes motivos de morte da música Pop. Eles tentariam estourar como uma formação de Hip Hop até 2003, quando lançaram o terceiro disco, Elephunk. Este trabalho marcava a entrada de Fergie na banda. Logo elevada à categoria de diva absoluta da música Pop, Fergie – ou Stacy Ann Ferguson – nunca teve qualquer talento mas significou que o BEP deixava de ser um grupo de Rap e passava a ser uma espécie de É O Tchan americano que, assim como o similar nacional, se valia de espertalhões com conhecimento de algum ritmo nativo, alguma habilidade na produção e cara de pau suficiente para dar as fuças em toda parte, levando sua “arte” como algo digno e revestido de importância. Dito e feito. O BEP contribuiu largamente para a esterelização da música Pop americana, para a criação de um padrão acinzentado de música negra, sem alma, sem músicos, sem criatividade, apenas motivada pela pista de dança e pelas misturas de energéticos e destilados. Também forneceram grande quantidade de música para ginástica, o que, convenhamos, é quase a mesma coisa. Will esteve à frente desse processo o tempo todo. Vieram novos discos, Monkeybusiness (2005), Energy Never Dies (2009) e The Beginning (2010), todos com grande quantidade de beats frouxos, autotune em excesso, clima de vácuo total da alma. Uma dança de bonecos.

Willpower é o quarto disco solo do pulha. Para acompanhá-lo nessa tour de force, ele chamou luminares como Britney Spears, Miley Cyrus, Justin Bieber, Chris Brown, entre outros. Emprestou a essa gente o microfone e o crédito de fazer parte da carnificina. As “canções” são nos mesmos moldes da produção do BEP, ou seja, mais do mesmo lixão burocrático e estéril. Se você gostou do último disco do Daft Punk e – como muitos amigos meus cujo gosto musical é respeitável – enxergou nele uma aura de resgate de uma verdade para a música Pop, no sentido de trazer boas influências, cortar gorduras musicais e ir direto ao que importa, beber das melhores fontes, enfim, viu no disco um desejo de mostrar que é possível dançar e manter o cérebro enquanto faz isso, trabalhos como esse disco de will.i.am são o inimigo a ser combatido e exterminado. Não é exagero ou impressão, é a verdade. Se você gostou tanto de Random Acess Memories, acreditou no que está ali e vê com seriedade a ação de procurar nas estantes do passado a inspiração para a boa música, o disco novo de Will é o alvo. Destruam-no enquanto é tempo. Depois vão atrás dos trabalhos dos cúmplices de Will na empreitada e, seguindo em sempre, limparemos os trilhos da música Pop em algum momento no futuro, se tudo der certo.

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MARCADORES: CEL

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.