O Jazz como Vanguarda Alternativa da música Pop

Assim como em seu surgimento, gênero segue ajudando a definir rumos estéticos

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Fotos: Kamasi Washington (Divulgação)

Vou ser sincero com vocês: demorei décadas para entender o Jazz. Guardem isso porque será difícil ver alguém escrevendo sobre música admitir isso. Era um gênero musical quase impenetrável para minha capacidade de compreensão e, apesar de vários esforços em diferentes épocas da vida, só há pouco consegui começar a entendê-lo e, a partir daí, apreciá-lo com enorme felicidade. Sempre intuí que o Jazz, tanto quanto Rock, Blues e R&B, era herdeiro da tradição de insurgência contra as injustiças da sociedade ocidental, algo que passou, a princípio, por fazer música “burra”, “impura” e “vulgar”, bem distante da escola tradicional europeia, herdada pela América colonial. Era música de e para negros e brancos pobres, ambos excluídos do sistema, tentando sobreviver culturalmente num ambiente inóspito. Ele e seus primos em outros lugares, a saber, o Samba, a Salsa, o Calipso, entre outros.

Este texto não pretende ser uma aula de História, porém, entender o Jazz passa por ter em mente este passado de vivências e lutas. Também passa por admitir que, apesar do anseio por várias instâncias políticas e sociais no meio do discurso, o estilo sempre explorou o que cada instrumento e cada homem poderia fazer de melhor. Esticar limites, inventar escalas, subverter doutrinas e, acima de tudo, tornar individual cada sopro dado, cada tecla ou corda que fosse acionada. Como se estes instrumentistas fossem equivalentes a artistas do Renascimento. Bem, pelo menos até certo ponto.

Foi na década de 1960 que o Jazz se viu obrigado a mudar mais profundamente. Abriu mão de um purismo/hermetismo, relacionado diretamente com uma vanguarda artística e criativa, em favor de uma aproximação com o Rock, estilo que havia surgido então e assumido a ponta de lança da comunicação de intenções com os jovens. Como as novas e desconcertantes manifestações daquele fim de década, o Rock representava a novidade e a liberdade enquanto ele, o Jazz, portador desses valores desde sempre, começava a ser visto como algo impenetrável e estagnado, prestes a desaparecer. Veio então o que os especialistas chamaram de Fusion, o subgênero jazzístico que se aproximou do Rock, mais tarde do Funk, com vistas a permanecer relevante. Este momento é chave para entender o Jazz atual.

As décadas de 1970/80 e 90 foram um tempo em que o instrumentista virtuoso e capaz de romper paradigmas foi substituído por outros predicados, a saber, a habilidade de criar novas misturas com estilos já existentes e/ou uma espécie de selo de relevância artística/respeito artístico, em variantes inéditas. Veio o Jazz Funk e o Acid Jazz, mas foi a fusão de Hip Hop com Jazz que promoveu uma interessante volta do gênero ao seu público original: o jovem. O próprio Quincy Jones, trompetista, lenda viva e produtor de gente como Frank Sinatra e Michael Jackson, reconheceu a importância e a linha tênue que separava os dois gêneros musicais, passando a integrar as fileiras dos simpatizantes do Hip Hop já no meio da decada de 1980. Podemos dizer que, nos anos 1990, os grupos que misturaram o som das ruas ao Jazz foram os mais criativos: Digable Planets, A Tribe Called Quest, Guru e até gente mais arejada como De La Soul.

O Jazz não é prisioneiro de velhos. Pelo contrário. O tempo trouxe essa incômoda pecha para ele, a de ser relacionado com gente que só apreciava a habilidade do músico, no sentido de que “quem toca mais, sabe mais”, o que sempre foi repudiado pelos próprios arquitetos do estilo. Tocar mais ou melhor era uma consequência da genialidade inata e não uma instância para medir a relevância de um artista. Os apreciadores do fim do século 20, aliás, são especialistas em confundir tais medidas, mas isso é assunto para outro texto. Sendo assim, o que é o Jazz hoje? Agora? Mais precisamente, o Jazz que passa bem longe dessa confusão mencionada acima. O Jazz como motor do novo, onde está?

Ele está mais próximo de uma Vanguarda Alternativa da música Pop. Ela é composta de produtores e artistas, além de produtores-artistas, que se misturam em gravações, discos, participações especiais, arranjos e demais ações de âmbito micromusical, como se fossem agentes discretos. É gente, sobretudo, com mente aberta e disposição para experimentações. Podemos citar Flying Lotus, Esperanza Spalding, BADBADNOTGOOD, Kaytranada, Thundercat, Ronald Bruner Jr (seu irmão) e talvez os mais associados ao estilo, Robert Glasper e Kamasi Washington. A trilha sonora do filme-biografia sobre Miles Davis foi produzida por Glasper, que chegou a lançar um disco simultâneo com duetos e interferências em obras do gênio. Já Kamasi é uma espécie de reencarnação do saxofonista Pharoah Sanders, que, por sua vez, era discípulo de ninguém menos que John Coltrane, o sujeito que “inventou” a espiritualidade no Jazz, quando abriu mão da vanguarda do estilo – com precisão, rapidez e técnica – para abraçar uma forma crua e elevadíssima de música, registrada em seu disco de 1965, A Love Supreme.

O Jazz está presente na música Pop atual. Claro, há os remanescentes das outras vertentes do estilo, reverberando as confusões entre virtuosismo e relevância, abastecendo os fãs abastados, que pagam preços altíssimos para ver apresentações e saem delas comentando o quanto A ou B “tocam pra c…”. Claro, a individualidade é importante no Jazz, mas passa longe de sua totalidade de conteúdo. Tudo é importante e faria falta se estivesse ausente. Seria fácil oferecer, além dos artistas mencionados aqui, uma lista de álbuns clássicos do Jazz. Há vários por aí, todos datando do fim dos anos 1950/60, quando o estilo modernizou-se, mas abrindo mão de uma popularidade/facilidade vital para sua existência com viabilidade comercial.

Em vez disso, vamos recomendar trabalhos bem recentes, com inequívoco apelo jazzístico e cheios de pontos de partida para que você possa explorar e apreciar as virtudes do estilo.

A Tribe Called Quest – The Low End Theory (1991) e Midnight Marauders (1993) – Discos indicados para quem deseja entender como houve a aproximação entre Hip Hop e Jazz da forma mais tradicional, ou seja, com uso de sampling de grandes artistas do passado. Nesta instância, ATCQ é campeão.

Guru – Jazzmatazz vol.1 (1993) – Em vez de apenas samplear trechos de gravações famosas, o rapper Guru convocou um time de músicos e luminares do estilo, oferecendo algo verdadeiramente novo. O primeiro volume da série Jazzmatazz desenhou uma linha no chão e estabeleceu parâmetros.

Digable Planets – Reachin’ (A New Refutaion Of Time And Space) (1993) e Blow Out Comb (1994) – Dois discos em um ano, mostrando uma corrente mais estratosférica do Hip Hop, flertando com temas urbanos e esotéricos.

The Roots – Things Fall Apart (1999) – É um disco ponta de lança da chamada “segunda onda do Hip Hop alternativo”, com instrumentistas talentosíssimos e já conectados com a genialidade exibida pelo estilo na virada dos anos 1980/90.

Brad Mehldau – Live In Tokyo (2004) – É, não tem só Hip Hop por aqui. Brad Mehldau, talentosíssimo pianista norte-americano, carrega nas costas a herança de pioneiros como Thelonius Monk e Bill Evans, mas sem apelar para revisionismo. Pelo contrário, Brad tem criatividade de sobra para suas composições e para revisitar standards de Cole Porter ou dos irmãos Gershwin, mas tempera seus discos e shows com arranjos inusitados para composições de Nick Drake e Radiohead. Este álbum ao vivo é uma espécie de cartão de visitas de sua obra.

Robert Glasper Experiment – Black Radio (2012) – Este é o álbum que mostrou uma espécie de indissociabilidade entre Jazz e Hip Hop, praticamente inaugurando uma sonoridade nova. É um disco conceitual, cuja missão é resgatar o passado cultural da música negra estadunidense, especialmente a partir do Jazz clássico do pós-Segunda Guerra e ampliar seus contextos para a pós-modernidade. Glasper se dispõe a isso com um quarteto de instrumentistas e um monte de convidados. Não por acaso, é sua estreia no mais prestigioso selo de Jazz de todos os tempos: a Blue Note.

Kamasi Washington – The Epic (2015) – Um divisor de águas. A partir daqui, estamos contando uma nova história do Jazz e você está assistindo a tudo conosco.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.