O mapa de Kakubo

Com tiragem limitada em cassete e remixes feitos por BADSISTA, I.C.G e RHR, “ANDALUZ” acaba de ser lançado; Kakubo fala sobre o novo trabalho e conta como as fusões entre passado e futuro – e cidade e interior – fazem parte de seu processo criativo

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Fotos: Ivi Maiga Bugrimenko

“Os gêneros contidos no som refletem bem minha energia, intuição musical e um processo investigativo intenso pela minha linguagem de expressão. Minha felicidade com uma música gira muito em torno de encontrar ritmos inesperados, uma textura ou timbragem que nunca ouvi… é a parte em que mais me enxergo no som”. Essa são palavras de Katy Kakubo, produtora de 28 anos. Com uma visão minuciosa e original, ela é guiada por um estilo mais primário e abrangente, que vai de sonoridades industriais até fusões distorcidas de Electro, Drum & Bass e ritmos percussivos globais.

Vivendo a maior parte da vida no interior do Paraná, sua relação com a música começou desde nova. “Um marco foi há 10 anos, quando comprei um sintetizador no meu aniversário. É um Microkorg MK1, tá comigo até hoje. Mas antes disso comecei discotecando com 16 anos de forma bem iniciante, pelo laptop mesmo, tocando New Wave e Synthpop em pequenas festas em Londrina”.

Desde então, Kakubo comandou grandes apresentações em palcos variados: do RedBull Music Festival São Paulo ao SP na Rua, além de um set Boiler Room, pela Mamba Negra, realizado durante o isolamento social.

E agora é a vez de ANDALUZ. Planejado há mais de 2 anos, o registro foi produzido, principalmente, a partir de máquinas dos anos 1980 e 1990 [Korg Electribe Esx1, MPC1000 e Elektron Analog4, Microkorg MK1 e Roland MC505]. “O lançamento foi um processo demorado por inúmeras circunstâncias, então tem músicas bem antigas que foram amadurecendo lentamente e tomando a forma que estão hoje. Acredito que refletem mudanças de vida e uma evolução significativa com a minha produção”, conta Kakubo.

Diferente de MV42 – Emotional Crime Scenes (2019), projeto de estreia influenciado por takes brutos gravados das máquinas, aqui, o foco maior foi em pós-produção, edição e inserções de instrumentos manipulados digitalmente. Além disso, contou com um duo poderoso de sampleadoras, que permitiu recortar e manipular melhor esses sons. “No disco, tem trechos de músicas de Naná Vasconcellos, Muslimgauze, pontos de funk carioca, cornetas de dub a elementos acusmáticos de vida selvagem e urbana, como grunhidos de animais, sons de passos, buzinas e vocalizações distorcidas”.

ANDALUZ – disponível hoje, 18 de setembro, pelo selo Gowpe – tem tiragem limitada de cassete e inclui uma série de remixes feitos por BADSISTA , I.C.G e RHR (um dos fundadores do selo) – “um bônus que cai como um presente à pista de dança”.

Como o espaço e ambiente influenciam diretamente as suas produções?

Vivi maior parte da infância entre Assaí e São Sebastião da Amoreira, cidades de 20 mil habitantes próximas a Londrina, maior ali na região onde fui morar na adolescência até começo da vida adulta. São cidades enraizadas na cultura rural e sertaneja do Brasil, mas com influência da grande comunidade japonesa imigrante que vem em contraste com uma tecnologia ancestral envolvida. Aprendi a tocar violão quando criança em festa de família com meu tio sanfoneiro (e logo quis trocar por guitarra). Meus avós, sabendo que a neta gostava de música, me deram uma viola caipira e uma sanfona para estudar uns anos mais tarde. Acabei não dando esse gosto para eles. Apesar de querer muito dominar, tive mais facilidade com máquinas e coisas elétricas. Por essa vivência, posso dizer que o ambiente influencia, ao mesmo passo que a gente vai encontrando nossas bolhas e identificações. Só um pouco mais velha e com a internet é que fui buscando meus gostos e construindo minha individualidade. Fora as vertentes que tocavam nas rádios, música eletrônica e produzir esse tipo de som era um interesse dividido com pouquíssimos amigos do meu contexto real, e essas poucas foram pessoas que fui conhecendo em festas de contexto queer, num processo também de descoberta da minha sexualidade. Mas sou grata por esse percurso, crescer em cidade pequena me preservou certa inocência e confabular sonhos fora da minha realidade, e isso define muito quem eu sou e minha determinação com as coisas.

Para além da música você também atua como designer. Há uma relação “imagem X som”?

Meu início com produção musical veio através das artes visuais, desenvolvendo uma pesquisa em performance audiovisual (live) na faculdade em artes visuais multimídia. Acontecia de um jeito bem primário, disparando loops de áudio pelo Ableton, captados por celular, correlacionando com loops de imagem pelo Modul8 (software de vjing) que permitiam ser modulados simultaneamente. Foi aí que comecei a me interessar por música eletroacústica e experimental, que me fez vir a ingressar numa especialização depois. Como resultado mais direto entre as duas linguagens, acredito que meu interesse e desenvolvimento com texturas no som vem de certa forma desse contexto de estudar imagem. Minha música tem muito disso e dá para relacionar facilmente a forma de pensar visualmente as camadas, contrastes, etc.

Me conta um pouco sobre a ideia da capa do disco…

Bom, eu fiz uma pesquisa de imagens em uma tentativa de levar uma tradução imagética das músicas para o Leonardo Faria, que é o diretor visual do Gowpe e desenvolveu o design. Inspirada pelos timbres e paisagens sonoras, fui elencando essas imagens que iam de um universo bucólico (natureza morta, campos, animais) a divindades e objetos com matérias-primas nobres como ouro, tecidos, esculturas em rocha. Foi um apanhado de itens e objetos simbólicos em relação aos signos sonoros e narrativa do disco. 

A capa é uma coroa de flores japonesa, que na verdade é um objeto imperial usado como pedido formal de desculpas. E o cavalo que vai na contra capa vem como um signo de proteção, é um totem pessoal que também batiza o álbum e inspirou duas faixas do disco. Correlaciona com o som por sua força bruta, velocidade, ao mesmo tempo que o cavalo é um animal de carga, que, apesar de sua força, carrega uma tristeza nessa relação de servidão. É o signo mais simbólico no conjunto todo, o que melhor traduz a energia e o contexto dessas músicas.

Como se deu a curadoria dos artistas do lado B? Como surgiu esse desejo de lançar em fita cassete? Por quê?

Escolhi artistas próximos que admirava e já tinha muita vontade de trabalhar junto, mas um link sobre a escolha vem pelo trabalho rítmico e percussivo que esses produtores desenvolvem e que me encantam. Houve a ideia de lançar um disco de remixes separado, mas ao ouvir já parecia que essas músicas faziam parte do conjunto. Fiquei apegada, então álbum foi lançado dessa forma. O resultado foi emocionante, elas fizeram versões muito originais de forma que jamais imaginaria. Em três músicas conseguimos relacionar um ensopado influências que vão do Future Beats, Bass/Ghetto, Trance ao Jungle e Drum & Bass. Aliás, fica um agradecimento de coração a eles aqui: Isabela Ghislandhi I.C.G., Rafa Andrade Badsista e meu irmão, Roni RHR. 

E a fita cassete é um dos meios mais viáveis de lançar música fisicamente na nossa realidade hoje. O selo Gowpe tem trabalhado com esse formato que também gosto muito pelo desgaste que o processo de gravação imprime no som. Nossa tiragem vai ser bem pequena então quem tiver interesse nos avise pelas redes.

O seu som aglutina ruídos, distorções e justaposições que criam uma atmosfera industrial e, ao mesmo tempo, utiliza ritmos percussivos tribais. Como a cidade e a dinâmica urbana te inspiram? E a ideia de uma fuga da cidade? Também te inspira?

Acho que é a mistura de todos os contextos possíveis. A estrutura do Techno, que seria mais amplamente categorizada, essas músicas acontecem para mim definitivamente pelo contexto urbano e vida noturna. Já as referências tribais acontecem por algumas circunstâncias. Durante meu desenvolvimento enquanto DJ, minha pesquisa foi afunilando para sons percussivos de diversas etnias em busca de beats mais ricos, o que se encontra com um interesse em paralelo sobre cultura oriental, uma busca filosófica/espiritual e por influência das minhas origens ancestrais que descendem de aborígenes asiáticos, advindos do povo Ainu (vindos da Mongólia para Hokkaido) e Ryukyanos de Okinawa, ambos migrados pro Japão. 

“Crescer em cidade pequena me preservou certa inocência e confabular sonhos fora da minha realidade, e isso define muito quem eu sou e minha determinação com as coisas”—Kakubo

As produções oferecem uma jornada em que diversos elementos se combinam, surgem e ressurgem. Como é o seu processo de finalização de uma faixa? O momento em que você diz “é isso, agora realmente tá pronta”? E ainda: como funciona a hora em que você sente que precisa colocar algo a mais, um punch, uma camada? O quanto é inspiração, criação ali do momento ou teste seguido de teste?

Meu processo de composição geralmente surge por pequenos sons que encontro brincando com batidas ou distorcendo gravações, quando encontro algo que acho interessante vou desenvolvendo o entorno. Geralmente, quando me empolgo com uma batida, me vêm muitas ideias e vou registrando tudo numa jam infinita, sem julgar muito o que está sendo feito. Depois, o trabalho é sempre reduzir e sintetizar para tornar a ideia mais objetiva e tentar potencializar os elementos mais interessantes numa fase de refinamento. Honestamente, eu gosto de trabalhar no som o quanto tempo for possível, mas geralmente acaba por conta do deadline.

Foto: Ivi Maiga Bugrimenko + Leonardo Faria

O disco propicia uma atmosfera futurista, ecoa distopia industrial e, ao mesmo tempo, principalmente pelos elementos percussivos e timbres, evoca uma raiz, um passado, um ritmo expansivo e simples. Você acha que, nesse momento, passamos por uma cisão entre passado X futuro? Sua inspiração passa por essas incertezas temporais, especialmente de agora?

Acho que acabamos passando mais tempo nesses dois planos (futuro e passado) do que de fato no presente, e essas músicas percorrem por esses planos do imaginário. Sobre o momento atual e pandemia, em relação a minha música, tem sido preocupações com aspectos mais práticos, se vou poder continuar fazendo isso, de que forma as pessoas vão consumir música, o que vai acontecer a partir daqui. Mas essa energia apocalíptica é um pouco do que eu sou.

Você já se frustrou com o resultado final de uma produção?

Isso é constante. Felizmente peguei o costume de guardar todas as ideias e revisitar arquivos antigos e descartados de tempos em tempos, assim como gravo muita coisa sem objetivo só pela prática. No fim, sempre tem algo interessante para refletir ou usar desses registros.

PRODUCED AND MIXED BY KAKUBO DURING 2018-2020 

MASTERING AND RECORDING BY RHR 

REMIXES BY ISABELA GISLANDHI (I.C.G), RAFAELA ANDRADE (BADSISTA) AND RONIERE SANTOS (RHR) 

ARTWORK COVER BY LEONARDO FARIA AND KATY KAKUBO 

ORIGINAL LETTERING BY PEDRO PINOTTI 

PHOTOGRAPHY BY IVI MAIGA BUGRIMENKO AND RIJKSMUSEUM COLLECTION

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ARTISTA: BADSISTA, I.C.G, Kakubo, RHR
MARCADORES: Lançamento