O momento da verdade

O rapper Vandal lista cinco discos que o influenciaram para além do Rap e compartilha pensamentos sobre a cena e seus próximos passos

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Fotos: João Victor Medeiros

Presença certa e responsável pela condução da cerimônia do show do grupo BaianaSystem – principalmente durante os circuitos do Carnaval de Salvador – o rapper Vandal surpreende por suas performances ao vivo. Quem já viu sabe que trata-se de algo que mais parece a aparição de um Cristo preto e com sotaque das ruas do bairro Cidade Nova da capital baiana do que qualquer outra coisa mais banal.

Esse respeito que recebe vem de sua extensa e sólida caminhada no Rap soteropolitano. Tendo vindo da pixação há mais de dez anos com o vulgo Sidoka Vandal, o rapper foi pioneiro em diversas tendências desde sua mixtape Tipo Las Vegas (2014). “O que eu fiz na mixtape muita gente está fazendo agora saindo como inovador”, critica. Em cerca de 35 minutos e quinze faixas, ele explora no registro subgêneros que vem se tornado hegemonia no Hip Hop brasileiro como o Trap, além do Grime e do Pagode baiano. “A gente vive esse lapso porque ninguém pesquisa nada nesse país.”

O que tá sendo feito agora de usar sample de música nacional e pagar de Cult, se você ouvir “Esse cara tem” (de Tipo Las Vegas) já tem o sample ali da Claudia. Eu tento sempre fazer uma música que não soe com nada que está sendo feito. Pode ser uma falha minha e eu devia seguir a maré do que todo mundo faz, mas é a referência que eu tenho de Londres de Grime, Garage UK, Bassline, House. A gente chegou em um momento de ser mais maquiavélico em termos comerciais para sobreviver mesmo e continuar produzindo.” Assim, Vandal consegue estar no centro de dois universos: o mercado da música brasileira acompanhando uma das bandas mais reconhecidas atualmente e, ao mesmo tempo, no underground do Rap, sendo um representante genuíno das favelas de Salvador. 

No dia 15 de julho, o rapper lançou um single duplo chamado AMOREZH / SALCITYH PARTH 2, em que essa transição entre os dois universos fica ainda mais nítida. Na primeira parte, um beat inspirado na música eletrônica londrina serve de base para versos sobre amor sem ciúmes e ambientação tropical. Quando o beat vira, o refrão “puxo o bonde das favela de SSA” marca o novo instrumental, um Trap na linha de Memphis e Young Dolph, “mais diálogo do que adlib”, nas palavras de Vandal – e com clipe gravado em uma quadra com membros do Hip Hop Pernambués, em um evento para arrecadar alimentos para a comunidade.

Chegou o momento de ter um cara como eu, que é uma pessoa aclamada pela favela e tem esse olho no olho, essas pessoas precisam de um representante deles lá. O representante do Cult, do universo fake, já tem tudo! É chegado o momento de um ‘real one’, um OG. Eu sou uma verdade, ninguém pode tirar de mim isso.

Outro elemento que chama atenção na construção imagética de Vandal e que colabora para que ele crie mais identificação com o público das favelas são as roupas. Segundo ele, o lifestyle do Grime encanta muito Salvador, mesmo partindo de uma Inglaterra soturna. “Principalmente por causa da Nike, o gueto ama Nike. O tecnológico, as cores, corte”, ele divaga – “Eu me lembro quando a Nike patrocinou o Bahia, foi uma febre, todo mundo queria uma camisa da Nike do Bahia”. Para Vandal, pouco vale uma camisa da Gucci – que segue a linha do high-fashion veiculada pelo Trap – se não houver valor cultural depositado. “Acho que o grande lance é se sentir bem, o gueto gosta de se sentir bem”. 

Nascido e criado no bairro Cidade Nova, bairro cultural e divisa entre periferia e centro, o artista recebeu muita informação cultural desde novo – seja do avô que trabalhava como segurança de uma TV local e ganhava discos, do pai que era dançarino de Break e até do movimento Punk do bairro. Nessa caldeirão ainda haveria as “Festas de Largo”, celebrações populares nas praças de Salvador em homenagem a santos e orixás. Para entender como essa miscelânea de informações constitui a obra do rapper, Vandal de Verdade nos listou cinco álbuns fora do Rap que que o marcaram.

GAL COSTA – Fa-tal a todo vapor (1971)

“Esse disco me encanta pela concepção dele. Gal é a cantora nacional que mais gosto e é meu sonho de feat. Ela tem Profana (1984) também, o Índia (1973) que é um disco que eu amo, mas o A Todo Vapor por ser um disco dirigido pelo Waly Salomão, tem o Jards (Macalé), foi a época que ela era a intercessora com Caetano e Gil no exílio. A forma que ela transita no disco, foi dada essa liberdade pra ela. O contexto e a liberdade que o disco tem é muito forte. Esse disco me despertou isso, a possibilidade da liberdade, de experimentar. O nome, a capa, todo imagético pra mim. É um sonho, uma das obras-primas.”

RAGE AGAINST THE MACHINE – Rage against the machine (1992)

“Eu tinha um amigo na Cidade Nova chamado Portela, ele tinha um Voyage rebaixado e só ouvia ‘Killing The Name’, surreal. Era todo aquele bonde da pixação junto do skate e eu ficava intrigado. Quando eu descobri esse disco mesmo foi uma época que eu estava mergulhado na pixação, esse disco foi um impulsionador, eu ouvia da primeira à última faixa e me dava aquele gás, sabe quando você precisa de uma injeção? Após isso conheci coisas como Cypress Hill, Björk, bandas de Nu Metal que flertavam com o Rap.”

PARANGOLÉ – A verdade de cidade (2007)

“Foi um divisor de águas pra gente. O Bambam para mim é a voz do Pagode. Sabe quando dizem “qual seu MC favorito?” e você escolhe um? Quando você me perguntar qual meu cantor de pagode favorito, para mim é o Bambam.”

E tem isso? A discussão de melhor MC?

“Tem, tem gente que ama o Kannario ou o Alex Max que era do Saiddy Bamba, todo mundo tem um que é “O cara” e pra mim é o Bambam. Foi uma época que contaminou a cidade e tocou da primeira à última música. A número um, que é ‘A Santa’, surreal. Era tipo uma oração pra gente. ‘Seus olhos não enxergam a imagem da santa chorar’; antes da gente cair na onda da diversão, o disco já começava com uma oração. A forma que ele trouxe o groove arrastado e aí chegou Edcity e vários outros nomes, que foi o Rap nosso. ‘A verdade da cidade’ é o nome de uma das músicas do meu disco novo por causa desse álbum. Se eu colocar esse disco para ouvir em qualquer lugar ele vai me confortar, é a minha cidade. Também me deu o start nessa busca por fazer algo nosso, com as referências daqui.”

TIMBALADA – Cada cabeça é um mundo (1995)

“A Timbalada, para mim, foi uma das paradas mais sensacionais musicalmente falando e que mais me despertaram, também. Hoje em dia, eu trabalho com o BaianaSystem onde a gente tem o Robertinho e o Japa que trabalharam com o Timbalada. Então, eles estão presentes na minha vida até hoje. Permeia muito, queria colocar os cinco discos aqui. O que muita gente faz hoje do que se chama de “música baiana” bebeu desse disco. Eu me lembro que minha tia me deu uma camisa do staff do Guetho Square (casa de shows em Salvador, no bairro do Candeal) e foi ostentação no gueto durante anos, em festa de aniversário, casamento, eu ia com essa camisa, cara! Tirava braba com essa camisa. Eu tive a oportunidade de tocar no Candyall Guetho Square meses atrás com o Baiana e foi muito especial.”

OLODUM – Da Atlântida à Bahia… O mar é o caminho (1991)

“Olodum é religião pra gente. Um soteropolitano que não gosta de Olodum já é meu inimigo. A gente é olodúnico. Eu morei no Pelourinho, mais um recorte de vida. Entender a história do Pelourinho, (rua) Maciel de Cima, Maciel de Baixo, a história do povo negro. A discografia do Olodum é um recorte histórico, tem as situações da África e o poder que (o africano) tinha até Salvador, quando o Pelourinho estava defasado até a sua reforma e teve o boom turístico. Até hoje eu vou aos ensaios e consigo sentir a mesma emoção que antigamente. Eu me lembro, meus tios tinham suas correntes de prata com suas iniciais – o gueto tem essa cultura da prata – todo mundo tinha. Eu era pego no colo quando criança e me lembro tocando nas correntes, até vir a homenagem ao Olodum nas correntes e nas tatuagens. Eu sou completamente apaixonado, assim como a Timbalada. Entender que nosso balanço são os tambores… Minha música no CD de BaianaSystem (“CertoPeloCertoh”) é um Samba Reggae genuíno guiado por Mestre Jackson. Eu não usei o sample de Samba Reggae para dizer que eu tô resgatando a Bahia. A gente fez uma pesquisa, eu precisava fazer algo em homenagem a isso com respeito. O Atlântida é um cântico em cima dos tambores mais secos e depois você vai vendo o incremento de outros elementos musicais nos outros discos. Por isso que eu cito ele, para gente dar valor ao tambor. O Pagode e o Samba Reggae, para a gente, supera um beat de Trap, o nosso balanço já é esse.”

E qual o próximo momento na vida de Vandal?

“É o momento do disco, meu primeiro. Hoje em dia, eu me coloco na trincheira, na rua, como porta-voz disso tudo. Eu quero agora vencer essa trincheira e me colocar no local em que minha palavra realmente tenha o peso que merece ter. Não por mim, que eu sou o Vandal, mas sim porque eu represento todo um processo. Chegou o momento de ter um cara como eu, que tem essa bagagem e é uma pessoa aclamada pela favela e tem esse olho no olho, essas pessoas precisam de um representante deles lá. O representante do Cult, do universo fake, já tem tudo! É chegado o momento de um ‘real one’, um OG. Eu sou uma verdade, ninguém pode tirar de mim isso. É o momento dessa verdade conseguir representar vários outros verdadeiros.”

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ARTISTA: Vandal