A música está em todos os cantos de São Paulo: isso foi algo que Nabihah Iqbal logo notou ao chegar à cidade, onde se apresentou na 14ª edição do Balaclava Fest, no dia 10 de novembro. Em sua primeira vez na América do Sul, a britânica também encaixou na agenda um show no Sesc Carmo; uma discotecagem comentada, a convite do Balanço e Fúria; e um DJ set no Dōmo Bar.
Nesses quatro eventos, Nabihah deixou clara a sua paixão pela música,
razão que a fez persistir na feitura de seu último álbum, DREAMER, lançado em 2023. Quem ouve o disco experiencia algo que transita entre dream pop, pós-punk e eletrônico – mas, para ela, há outras camadas, relacionadas às sombras do que lhe escapou pelos dedos.
No começo de 2020, seu estúdio em Londres foi roubado junto com todo o material no qual estava trabalhando. Enquanto a investigação do crime acontecia, Nabihah, que estava com a mão quebrada, soube que seu avô sofreu uma hemorragia cerebral. Ela então viajou ao Paquistão para visitá-lo, sem saber que a pandemia de covid-19 fecharia todas as fronteiras em seguida.
Esse foi o cenário que a cantora e compositora precisou enfrentar para reconstruir sua música e si mesma, com o incentivo do avô, quem lhe encorajou a comprar um violão, seu primeiro instrumento após o roubo. “Fiquei muito tempo sem gravar nada, trabalhando com o violão. Ou então com uma guitarra, pedal de loop e harmônio, pensando em ideias diferentes e nas letras. Foi provavelmente uns seis meses depois do roubo que comecei a tentar gravar música novamente”, relembra.
Diante desse novo contexto, decidiu trilhar outros caminhos. “Eu percebi que era meio impossível recriar algo que nem estava terminado, para começo de conversa. Então eu abandonei a ideia e comecei tudo do zero, voltei ao básico”. O plano deu tão certo que ela até incluiu ironicamente a pessoa que a roubou nos agradecimentos do disco.
“Cada artista percorre seu caminho para descobrir quem é, o que está tentando fazer ou dizer. Adotar meu nome verdadeiro como nome artístico e meu rosto na capa do álbum significa estar mais em contato comigo mesma, não ter vergonha do fato de que essa música é minha música. É realmente sobre mim, minha vida e meus sentimentos. Meu rosto provavelmente estará no próximo disco também”
Trama sonora
A viagem ao Paquistão fez com que Nabihah se reconectasse às suas raízes no país e levasse alguns elementos da música de lá para DREAMER. Um deles é o harmônio, instrumento frequentemente usado na música paquistanesa, que aparece em “In Light” e “Closer Lover”, faixas de abertura e encerramento do álbum, respectivamente. O interesse pelo harmônio também surgiu de outras conexões musicais. Sharon Van Etten, para quem Nabihah abrirá a turnê europeia em 2025, proporcionou uma dessas ligações. É com a ajuda do instrumento que a norte-americana cria a atmosfera do seu segundo disco, epic.
Jeff Buckley, uma das grandes inspirações de Nabihah, era fã do harmônio. Nos primeiros segundos de “Lover, You Should’ve Come Over”, canção do cultuado Grace (1994), é o som etéreo do instrumento que constrói a base da música que escala em intensidade ao longo de quase sete minutos. Buckley, que viveu apenas 30 anos, permeia ainda a colcha de retalhos feita por Iqbal em “Sunflower”. Ao compor a letra da música, além de Jeff, ela pensava em outras duas pessoas que morreram cedo e tiveram seu potencial artístico interrompido: o poeta John Keats e a cantora e produtora SOPHIE, uma de suas mulheres amigas.
Em conversa com a jornalista Thaís Regina, na discotecagem comentada do Balanço e Fúria, Nabihah comentou como sente falta de compartilhar o seu processo criativo com SOPHIE, algo que era uma via de mão-dupla. Nos singles “LEMONADE” e “L.O.V.E.”, da amiga, Iqbal contribuiu com os vocais.
Enquanto Keats inspirou “Sunflower”, Nabihah mergulhou no universo criado por Thomas Hardy no livro Tess dos d’Urbervilles: Uma Mulher Pura ao escrever “This World Couldn’t See Us”. No palco do Sesc Carmo, disse que o romance, apesar de vitoriano, dialoga com a realidade de agora. Isso porque Tess, a protagonista da obra, é estuprada e desmoralizada por isso. “Adoro ler e leio muita literatura e poesia antigas, porque para mim todos esses clássicos realmente resistiram ao teste do tempo”, disse ao Monkeybuzz.
Já para a batida de “This World Couldn’t See Us”, Nabihah fez uma viagem mais curta no tempo, parando nos anos 1980, década que tem papel importante no seu leque de referências. Foram as texturas de “Give Me Back My Man”, do The B-52’s, que estavam na sua cabeça quando arquitetou a música. Ao lado de The B-52’s, Cocteau Twins, Tears for Fears, Bauhaus, Kitchens of Distinction e The Cure são algumas das bandas oitentistas que a artista ama. Do último grupo, Nabihah levou “A Forest” para seu setlist, e o cover foi bem recebido pelo público tanto no Balaclava Fest quanto no Sesc Carmo.

À flor da pele
Em 2013, quando lançou seu primeiro single, Nabihah usava Throwing Shade como nome artístico. Foi só em 2017, com a chegada do álbum de estreia, que assumiu o próprio nome nos trabalhos. Os seis anos que separam Weighing of the Heart de DREAMER deram também a confiança para que ela usasse uma foto sua na capa do segundo disco.
“Eu acho que é uma jornada. Cada artista ou músico percorre seu próprio caminho para descobrir quem é, o que está tentando fazer ou dizer. E para mim, adotar meu nome verdadeiro como meu nome artístico e meu rosto na capa do último álbum significa estar mais em contato comigo mesma, não ter vergonha do fato de que essa música é minha música. É realmente sobre mim, minha vida e meus sentimentos. Meu rosto provavelmente estará no próximo disco também”, reflete.
A foto que estampa DREAMER foi tirada no mesmo dia em que Nabihah finalizou o álbum, para registrar o fim desse ciclo. E embora a fotografia não tenha sido pensada para essa finalidade, os olhos fechados, como se ela estivesse numa viagem onírica, combinam com o título. Um olhar mais atento revela que Nabihah usa uma camiseta de Jeff Buckley na foto, trazendo mais uma vez o cantor consigo. Para além das camadas superficiais, a identidade de Nabihah se espalha pela ficha técnica do disco. Ela mesma gravou e produziu todas as faixas, além de ter tocado todos os instrumentos, com exceção da bateria adicional em quatro das dez músicas.

Alta fidelidade
Outra faceta de Nabihah é a de locutora. Ela apresenta um programa na NTS Radio desde 2017, no qual compartilha música de diversos gêneros e culturas, interesse que se tornou mais latente por ter estudado etnomusicologia na Universidade de Londres. Nos episódios, já mergulhou na música de países como Paquistão, Itália, Turquia e Istambul, além de dedicar especiais a Bob Dylan, Jeff Buckley e SOPHIE, e trazer convidados para entrevistas, o que já aconteceu com Arooj Aftab.
No episódio que foi ao ar antes de vir para o Brasil, ela incluiu o país no seu set do programa. “Toquei algumas músicas do Vinicius Cantuária. Coloquei uma de suas faixas lançada nos anos 1970, que parece uma música disco-funky brasileira. E então toquei um que ele lançou em 1984, que soa como um pop oitentista. Eu amo muito a música brasileira”, conta.
No Dōmo Bar, onde discotecou por volta de duas horas e meia, fez questão de incluir representantes nacionais na sua seleção. De Jorge Ben Jor, escolheu “Roberto Corta Essa”. “O Dia”, de Chico Evangelista, também entrou no set, bem como “Na Canção”, de Cantuária. Prefab Sprout, John Coltrane, Kendrick Lamar e Frank Ocean foram alguns dos artistas internacionais que protagonizaram a curadoria de Nabihah.

Terna vitória
A turnê de DREAMER começou em Londres, em maio de 2023, e chegou ao fim aqui no Brasil. Depois de mais de 80 shows, Nabihah notou de perto o impacto do álbum no público, que se entrega à dança em todos os países.
Nos dois shows que fez aqui, os brasileiros se juntaram a ela no coro de “Zone 1 to 6000”, algo inédito até então. Mas o que se repete em todo lugar que passa são as trocas com quem se conecta com a música dela. No evento do Balanço e Fúria, contou que um motorista de aplicativo falou com ela após sua apresentação em Lisboa. Ele não costumava ir a shows, mas sentiu vontade de fazer isso de tanto que ouviu as músicas de Nabihah enquanto dirigia de um canto a outro da cidade.
No Sesc Carmo, onde fez um show mais intimista, foi onde atendeu mais fãs e autografou seus discos de vinil. Pouco tempo depois de ter subido ao palco, comentou ter gostado da atmosfera do local pela diversidade de atividades que acontecem por lá. Enquanto se arrumava no camarim, uma aula de capoeira acontecia perto dela.
De São Paulo, Nabihah levou na mala os discos que garimpou na Galeria Nova Barão e o desejo de retornar ao Brasil. “Cada show é como uma troca de energia entre o público e eu, como artista, no palco. E é por isso que algumas cidades são realmente memoráveis na minha mente, porque as multidões têm sido tão incríveis e energéticas”.