Entre símbolos e a espiritualidade corpórea, Natania Borges mistifica o autoentendimento. No seu álbum solo de estreia, I (Uma/One), a multiartista soteropolitana traz em discussão a solitude como força criativa para a contemplação pessoal. “Por ser um primeiro álbum, início de ciclo, foi um processo de mergulho interior. Nisso, vi que as músicas apontavam para um lado solitário, de perceber a individualidade de ser um corpo representante”, introduz a cantora. A passagem de ciclos acompanha Natania desde o começo, tanto na vida pessoal quanto na carreira. Hoje morando em São Paulo, ela viveu em Uberlândia (MG) por mais de 10 anos, depois de sair de casa em Salvador, ainda no começo da vida adulta. “Sempre tô andando por aí, essa é a terceira cidade onde eu moro, e isso também se relaciona com essa redescoberta constante, de se perceber em espaços e ambientes diferentes”.
A cantora iniciou sua carreira com singles e o EP Encosto (2020), colaborando com nomes do rap e da eletrônica como Vaine e Davi The Producer. Ainda em 2020, Natania liderou o álbum visual Liberdade, junto da banda mineira Azenza. No trabalho, ao lado de mais de 50 artistas que colaboraram no projeto, Natania trouxe a urgência e o caráter político de sua música de forma explícita, um reflexo daquele momento. “Ali era uma Natania bem reativa, militante mesmo. Era outro momento, pedia isso”. Nesse cenário, Natania se viu retratando mais o que precisava falar do que o que queria falar, sendo esse clique o ponto inicial da reflexão que desenrolou a perspectiva conceitual de I (Uma/One). “Tudo que passamos nos constitui de alguma forma, e aquele momento me levou a repensar também minha individualidade, como forma de recomeço”.
Em busca de seu som, assim como seu endereço, suas inspirações apontam para lugares distintos. Os clássicos da MPB de nomes como Elza Soares e Djavan direcionaram seus primeiros passos, antes ainda de começar a compor. Uma vez em contato com a cena independente mineira, longe de casa, as raízes baianas vieram como senso de pertencimento, por meio do axé e do ijexá, que deram contornos às suas primeiras composições, universalistas e políticas. Porém, para Natania, sua música está mais atrelada ao sentido estético do que aos gêneros musicais. “Composição também é criar, trazer associações sinestésicas em símbolos, imagens, códigos… Pensar além da música”, reflete.
“Composição também é criar, trazer associações sinestésicas em símbolos, imagens, códigos… Pensar além da música”
Para quem sempre vivenciou a música como manifestação de produção e experiência coletiva, se visualizar como artista solo foi um processo desafiador, mas também revigorante. “Quando finalizei com a Azenza, senti que precisava parar, me assistir e ver como seria dali pra frente. Ciclos fazem isso com a gente, trazem um mergulho interior”. A partir de uma livre experimentação, em carreira solo e sob seu nome somente, o título do disco surgiu como expressão sensorial dessa autocontemplação. “Escolhi um caminho que expressasse esse momento, de começar do zero, de início, mas sem ter um tema definido, um rótulo. No meio do processo, entendi que minha solidão era também uma força de unidade, e que as músicas transitavam nesse ambiente”.
“É o meu primeiro disco, um recomeço através da individualidade, do que é ser e estar, de entender a autonomia e o reconhecimento dos ciclos”
Ao longo das 14 músicas de I (Uma/One), a artista baiana aborda as diferentes formas de se ver sozinha — a única com total compreensão de seus sonhos, desafios e história. No seu mosaico lírico, Natania traz elementos como o tempo e a espiritualidade para se enxergar em processos de evolução e autoconhecimento. Dessa forma, em canções como “Passageira”, ela brada sobre como o imediatismo pode estar atrelado a experiências dolorosas que nublam perspectivas futuras – uma trava para a compreensão do que realmente importa. Já em “Quinquilharias”, a reflexão de como, apesar de pessoais e preciosos, sonhos são abandonados por conta de insegurança e incertezas. Seja em fluxos de consciência ou em memórias poetizadas, Natania entrega sensibilidade através da abstração de quem sabe o quão desconfortável, mas realizador, é exprimir um pedaço de si. “Percebi que não cantava sobre meus sentimentos, com coragem, com afeto. Esse foi o ponto inicial para mergulhar em mim mesma”, relembra. Durante o processo, antes da realização, mais incertezas surgiram. “Pensei em mudar algumas letras, mas percebi que essa foi a sinceridade que veio de mim. Na minha cabeça é abstrato, mas para quem escuta, pode ter muitos sentidos, como algo que eu não posso controlar mesmo”.
Se, nas letras, as mil possibilidades de se enxergar como indivíduo no mundo se apresentam de diferentes formas, na sonoridade, Natania tinha suas referências definidas. Ao lado dos produtores Xavbeatz, WaraBeatz e Lerry, a artista baiana guiou o universo sônico do álbum a partir do encontro entre o afrobeat e o R&B, mediado ainda por sua bagagem na MPB. “Na hora de preencher as músicas, eu tinha mais ou menos quantas faixas fazia mais sentido uma abordagem mais afrobeat, quantas mais R&B, quantas mais pagode baiano, mas tudo foi se encontrando no caminho”. No ouvido, o suingue quebrado de faixas como “Prazer” e “Apoteose” é climatizado pelos sintetizadores modulares de Monalícia Kenobi. Na primeira, a produção e o bass synth ficam com o toque electro-soul de Xavbeatz, produtor brasileiro que já colaborou com Natania em outros momentos. “Ele já conhece minhas referências, os ganchos das minhas composições. Sempre chegamos onde tem que chegar”, acrescenta a cantora baiana. Ecleticamente, as texturas rítmicas dos beats acenam ao R&B britânico de nomes como Lianne La Havas, passando pelo MPB de Luedji Luna, até a dance music da saudita Alewya.
Complementando o som, o astral de I (Uma/One) é o pano de fundo da parte visual do disco. Com financiamento da Natura Musical, o projeto se estende em roteiros audiovisuais, entre sessions, videoclipes e um short film. Os roteiros entrelaçam elementos místicos com a introspecção lírica do álbum, em que a artista encontra inspiração no tarô e em oráculos. “Nessa redescoberta, minha espiritualidade foi despertada através do tarô, dos seus símbolos”, explica Natania. A narrativa adentra temas de ruptura, solidão e a busca por autoestima, pertencimento e autonomia pessoal. Os vídeos são construídos a partir de referências visuais que não apenas traduzem as músicas, mas dão forma tangível às criações de Natania. “Um elemento que me marcou muito na construção visual foi a carta do ovo cósmico, que em muitas culturas representa o início de ciclos, o potencial da renovação”.
Como quem procura – provocando a si mesma – uma resposta para as coisas que sente, Natania Borges coloca em seu primeiro álbum solo sua razão de fazer música: enxergar sua essência. “É o meu primeiro disco, um recomeço através da individualidade, do que é ser, e estar, de entender a autonomia e o reconhecimento dos ciclos. Sobre a ideia de solidão, eu me vejo como uma pessoa só, mas num sentido de como diz Luedji — ‘eu não me encaixo’ em nada. Mas isso não me limita a estar e ocupar espaços. Uma mulher trans num mundo doente, mas que não abre mão de pertencer”.