O Sampler Nosso De Cada Dia

Aparelho foi decisivo para modificação da música de gente como Drake

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Outro dia – há bastante tempo, na verdade – pousei os ouvidos em Hotline Bling, talvez a canção de maior sucesso do rapper canadense Drake. Algo nela era bastante familiar e agradável e essa impressão ia bem além do flow tranquilo do sujeito sobre a base de batidas e ritmos que ia levando a melodia. A letra sobre mulheres, bebedeira, chamadas no celular e tudo mais, porém, havia algo mais ali. De repente, a noção veio: a melodia, elementos percussivos e de teclados eram de um clássico do Funk setentista, Why Can’t We Live Together, gravado pelo cantor americano Timmy Thomas, no longínquo ano de 1972. A gravação de Drake traz essas batidas aceleradas e encaixadas num ritmo mais dinâmico, uma vez que o original de Thomas é uma das baladas mais conhecidas desse segmento mais popular da música negra estadunidense. É uma gravação extremamente avançada para seu tempo, não tem bateria, e fala sobre racismo, com o verso cortante: “no matter, no matter what color, you are still my brother”, denunciando o rescaldo da efervescente luta por direitos iguais no país no fim dos anos 1960/70.

Em outro dia – mais recentemente – trouxe pra casa minha cópia do excelente To Pimp A Butterfly, de Kendrick Lamar, milagrosamente lançado no Brasil em CD. Ao ouvir o disco com atenção, me deparei com I, a penúltima das 16 faixas. Novamente a mesma sensação de familiaridade veio à medida em que Kendrick inicia seu fraseado nervoso, meio esganiçado, sobre uma base totalmente gravada, tocada de forma “orgânica”, ou seja, com instrumentos como baixo, piano, bateria e guitarra. Esta última, num solo quase contínuo, conduz grande parte da gravação. Novamente demorei um pouco de tempo até me dar conta que a melodia presente na faixa de Lamar era, na verdade, de That Lady, sucesso mundial do grupo americano The Isley Brothers. A faixa puxou seu álbum 3+3, até hoje um de seus maiores êxitos e traz a cortante guitarra de Ernie Isley, um sujeito que, sem exageros, está no mesmo nível de gente como Santana e, sim, Jimi Hendrix, com quem, inclusive, tocou no passado.

Estes dois exemplos – entre muitos outros que poderia enumerar aqui – mostram o quanto a música popular incorporou uma ferramenta poderosa em seu arsenal criativo. Estamos falando do sampler. Surgido nos anos 1970 como algo experimental, ele foi se tornando presente aos poucos e, no início dos anos 1980, já era parte essencial dos estilos musicais mais próximos da música Eletrônica, entre eles o Hip Hop. No fim da década já era figura fácil nos estúdios e gente como Fernanda Abreu e Biquini Cavadão já dispunha dele no início dos 1990. O fato é que o poder do sampler não está apenas na facilitação do processo criativo/de gravação, mas na possibilidade de recriação/ressignificação da própria música. Drake e Kendrick Lamar, figuras nascidas em grandes cidades da América do Norte, certamente cresceram com a música dos anos 1970/80 ao seu redor, cantada por seus pais e parentes mais velhos. Eles se apropriaram destas canções, tornando-as suas e, a partir disso, prontas para receber novos significados. Deu no que deu.

Claro, na evolução do uso do sampler em discos e gravações, há muitos episódios dourados, dignos de menção. Destaco a criação do segundo álbum dos Beastie Boys, Paul’s Boutique, composto exclusivamente de “samples”, amostras de canções, melodias, gravações, fragmentos e tudo mais. Lançado em 1989, o álbum é um divisor de águas na história da música popular do fim do século passado e influenciou muita gente em vários lugares do planeta. Um grupo de Melbourne, Austrália, totalmente fã desta lógica sonora, iniciou suas atividades motivado por o conceito de Paul’s Boutique. Seu nome? The Avalanches, que iniciou suas atividades em 1999 com outro disco composto apenas por fragmentos, Since I Left You, um dos grandes momentos da música pop nos últimos 30 anos. Não por acaso, The Avalanches recebe rótulos como “plunderphonics” ou “sampledelia”, que mostram o apreço do artista por colagens, manipulações de gravações, alteração de velocidade, frequência, enfim, uma série de operações que podem ser feitas no processo de composição quando se lida com sampling.

A verdade é que o uso do sampler como ferramenta na gravação e criação da música atual é mais um indício da manipulação do tempo ao longo da própria arte. As canções originais, fornecedoras de “amostras”, são retiradas de seu tempo, sendo arremessadas a um novo contexto e época, mudando e se transformando. De alguma forma, entretanto, servem como atração para gente que não está necessariamente no contexto da produção atual, mas que reconhece os elementos como pertencentes a outra fonte, identificando-a e estabelecendo uma conexão a partir disso. Foi o que aconteceu comigo, nos dois exemplos mencionados no início do texto. Os artistas sabem disso e não hesitam em utilizar tais expedientes como elementos de atração em suas criações. Se você quiser brincar de descobrir samples em suas canções favoritas, recomendo o glorioso site whosampled.com, no qual há listas e mais listas de canções sampleadas e que samplearam outras canções ao longo do tempo. Dá pra achar todo tipo de doideira por lá, é altamente viciante.

Em meio à rapidez cotidiana, a música é a forma de arte que mais de adapta ao ritmo das coisas. Quanto mais pudermos te informar de detalhes e macetes para entender e curti-la ao máximo, não hesitaremos. Boa viagem com este verdadeiro fluxo contínuo de ideias. Um fluxo de mão dupla.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.