Onde a tigresa pode mais que o leão

A funkeira carioca Deize Tigrona fala sobre seu aguardado retorno à música, sua parceria com a Batekoo e as novas faixas produzidas por BADSISTA

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Fotos: Vivi Bacco

Até um mês atrás, a vida de Deize da Silva estava resumida em ser mãe de suas três filhas com Rafael – com quem é casada há 20 anos – e ao seu emprego como gari no Rio de Janeiro. No entanto, a sua história no funk não a permite manter-se na sombra. Deize da Silva é também Deize Tigrona (a.k.a. Deize da Injeção), peça fundamental para o ritmo carioca, sendo uma das mulheres precursoras em inserir a sexualidade feminina como pauta de suas letras. Não por menos, ela já foi sampleada por gigantes como Diplo e M.I.A. no início dos anos 2000, já gravou com o duo Tetine e é parceira dos portugueses do Buraka Som Sistema.

Desde 2010, no entanto, esse currículo estrelado ficou em segundo plano quando as demandas do dia a dia se tornaram maiores. Para além das suas responsabilidades, Deize teve que enfrentar tudo enquanto duelava com seus próprios problemas psicológicos. Foi em busca de ajuda para enfrentar situações mais difíceis do que ela poderia prever, mas, em nenhum momento, abandonou a música por completo. Mesmo no olho do furacão, ela seguiu compondo, gravando de maneira independente e, na medida do possível, fazendo shows e outros eventos esparsos.

 

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2019, então, apresenta-se como “o ano da virada” para a cantora e compositora: ela agora é a primeira artista da Batekoo Records – selo dissidente do coletivo de festas Batekoo da Bahia que, desde o princípio, é um espaço de inserção, criação e expansão para a arte de pessoas negras e LGBTQ+. Nesse segundo semestre, suas primeiras duas faixas, gravadas com produção de BADSISTA, devem ser lançadas.

Era quase 11h30 quando Deize chegou para o nosso encontro em um café na Avenida São Luiz, no centro de São Paulo, na véspera da Virada Cultural. Ao lado dela, sua filha Joyce a acompanhava. No dia seguinte, ela se apresentaria em um show solo com participação de Linn da Quebrada. Sua timidez ao conversar comigo, no entanto, não dava conta de esconder a alegria que sentia em estar de volta a colocar seus projetos na rua. Entre um gole e outro de cerveja, ela contou ao Monkeybuzz como tirou suas ideias do papel.

“Tô vendo que ainda tem espaço pra mim. O povo acredita muito e eu também acredito. O sangue pulsa pela música e, querendo ou não, é ela, a cultura, o funk e o jovem que resistem a esse governo”

A nova irmã

Alguns dias antes, a cantora pediu licença de seu trabalho de gari para vir para São Paulo, cidade em que estava gravando as tais duas novas faixas: “Vagabundo” (que já tinha sido apresentada por BADSISTA em versão prévia durante sua participação no Boiler Room) e “Ibiza”. “Tá show, é sonho realizado”, me disse. “Tô feliz, é a primeira vez que uma produção minha é feita por uma mulher! O estúdio tava uma coisa de louco, eu estava, assim, eufórica! A BADSISTA, eu sempre tive uma curiosidade de conhecer ela. O Marginal Men já tinha me falado dela e eu já tinha visto algumas coisas dela com a Linn da Quebrada. Então, nosso encontro foi adiado e só nos encontramos pessoalmente na semana retrasada”, remonta Deize. “Ela sempre ouviu falar de mim e eu dela e agora a gente está – graças a Deus! – realizando essa vontade de trabalhar juntas… E, assim, a mina é foda, né?”

Em casa, em estúdio

“Ibiza” foi composta ao lado de ninguém menos do que sua própria filha Joyce Silva, de 17 anos. Ela já tem trabalhado como DJ e pensa seriamente em investir na carreira de produtora musical. “A gente montou um ‘estudiozinho’ lá em casa, na Cidade de Deus. Mais pra pegar a voz e ficar mais à vontade, já que eu tenho os outros dois menores. A gente preferiu fazer um quartinho e montamos o nosso estúdio ali e estamos aprendendo muita coisa. Nesse caso, minha filha já anda fazendo algumas produções. Ela toca piano e tudo! E aí, eu estava compondo, chamei ela.”

Deize explica que a canção feita em parceria com sua filha fala sobre saudades. “A gente que está na Europa, em turnê por outros estados, sente uma saudade imensa. A gente implora por um contato”. Na Virada Cultural, a cantora mostrou “Ibiza” para o público: trata-se de de um funk putaria clássico – gênero em que ela foi pioneira – que tem tudo para entrar para a sua lista de hits.

Batekoo de carteirinha

“Eu encontrei o Maurício [Sacramento, fundador e produtor da Batekoo] e nessa época ele tinha uns 18, 19 anos, em Salvador. Eu fui fazer um evento lá. Tinha sido convidada por ele e por outra galera. Nessa época, a Batekoo nem existia ainda. Hoje em dia, sei que a Batekoo é uma ideia do Maurício junto com o [Wesley] Miranda. Ele já me contou como foi. Então, eu vejo que eles fizeram uma festa que não tinha, que eles estão fazendo acontecer agora. Estou com eles desde o início”, relembra. “O sangue pulsa, pulsa, pulsa e a sensação é de que os meninos da Batekoo, mesmo sendo mais novos do que eu, me conhecem desde que eu nasci.”

A marca da tigresa

Deize começou ainda em 1997, pelas ruas da Cidade de Deus. No Rio de Janeiro, ela tocou em diferentes comunidades, “por entre becos e vielas”, como ela descreve como “uma escola para o crescimento do funk como ele é hoje”. Depois de seu contato com Diplo e M.I.A., a cantora tocou no Tim Festival, em São Paulo, e fez várias turnês pela Europa. Passou por países que nem lembra mais, mas recorda-se com mais clareza de França, Alemanha e Portugal. Neste último, inclusive, foi onde ela conheceu os meninos do Buraka Som Sistema, com o qual gravou a faixa “Aqui pra vocês”, em 2008.

Bem depois dessas viagens, nos anos 2010, era a hora de explorar novas sonoridades. Exemplo disso é a faixa gravada ao lado da rapper Tigarah, ou mesmo “Prostituto”, com o Jaloo. “Eu mandei a voz para o pessoal do Funk na Caixa e eles indicaram o Jaloo. Quando fui ver, estava lá tocando uma batida diferente, que parecia um reggaeton ‘tan-tan-tan’”, canta. “Pensei: ‘ué? Será que minha voz encaixa aqui? E, no fim, ficou aquilo.”

No lançamento de “Madame”, em 2016, ao lado do DJ Chernobyl, Deize escolheu uma locação importante para o clipe da música em questão. Ela veio até São Paulo para gravar no Hotel Cambridge, uma das principais ocupações do centro da cidade. Esse processo foi importante para a cantora que conta que, até hoje, vem com a filha para visitar o prédio na 9 de Julho. “A gente fica ali… De vez em quando batendo um papo com a coordenadora da ocupação, às vezes visita o brechó. Então, é incrível as coincidências: a Preta [coordenadora] está no meu clipe e as pessoas se surpreendem. ‘É, ela tá dançando lá’”, conta. “É incrível. A gente gravou esse clipe e, de repente, começou o Ocupa Minc, no Rio. Cada invasão que eles faziam os eventos, eles colocavam ‘Madame’ e me convidavam. E, realmente batia com o movimento e tudo mais. Então, é como se eu nunca tivesse parado, na verdade.”

Na rua e sem medo

“Há quem diga que a minha parada foi estratégica”, diz Deize que foi forçada a parar e refletir sobre sua vida durante um acompanhamento psicológico – processo que culminou em dizer “não” para muitos eventos e projetos. “Foi reviver o passado para entender que eu não sou vítima. Eu não sou vítima disso tudo. A gente está aí pra suprir, pra poder conversar com outras pessoas e aprender também”, conta sobre o que tirou das sessões. “Gosto de dizer: ‘estou aqui. Tive um problema como todo mundo, mas tamo aí’”. O mesmo vale sobre continuar ou não morando no Rio de Janeiro. “Até certo tempo, eu diria que não queria sair da Cidade de Deus. Hoje em dia, eu já vejo que é diferente. Mas, eu ainda resisto nisso, sabe? [Faz uma pausa longa, respira fundo] O Rio tá muito perigoso. A gente mora em comunidade, a gente também é resistente em relação a isso, mas… não sei muito o que dizer. A gente vai sobrevivendo a isso e tentando mudar. Tamo na rua pra isso aí.”

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