Encarar o caos de pensamentos fatalistas é um dos pontos de partida de Center, álbum de estreia do Or Best Offer, lançado em janeiro deste ano pela Ba Da Bing Records. “De certa forma, as músicas tratam de um momento de muitos questionamentos internos e transformações, que às vezes tomam uma forma complicada quando externados”, reflete Grace Schmidhauser, compositora, guitarrista e vocalista da banda. A carga emocional do disco é consequência, dentre outras coisas, da reflexão imposta pela pandemia, que condicionou a produção caseira do disco. “Foi um momento de solidão para todo mundo. No meu caso, me fez pensar mais de dentro pra fora, acho que tudo partiu daí”, complementa. Partindo da autocontemplação como meio de questionamento, o álbum encapsula anedotas pessoais de Grace em uma nuvem de força bruta com momentos repentinos de leveza sublime. “Esteticamente, estávamos atraídos por algo mais denso e pesado, mas no modo como estávamos tocando, percebemos nuances de uma leveza que no fim fez muito sentido”, comenta o baterista (e responsável pelos sintetizadores) Brian Culligan.
Sob pano de fundo mais abstrato, o duo do Brooklyn (EUA) mescla linhas vocais em estilo spoken word, com fundamentos de noise e post-rock. “A ideia que tínhamos do som era dar espaço para algumas coisas mais sensoriais em meio ao peso, de um jeito que não soasse como um conflito, mas com certa fluência”, examina o baterista. A percepção do próprio som foi parte do processo de gravação, que ocorreu no quarto de Culligan, em Ridgewood (Nova Jersey). “É curioso porque, pensando sobre, talvez esse controle do peso veio do fato de não podermos tocar muito alto durante as gravações”, contextualiza o músico. Criado em 2018, quando Grace e Brian se conheceram na faculdade (NYU), o duo teve diferentes formações e propostas antes de chegar à configuração atual. “Já tivemos baixista, outro guitarrista, até fomos um trio por um tempo. Mas acho que tanto nós dois quanto os outros viam que o núcleo era a gente mesmo”, relembra Grace. No caminho, a performance da banda foi moldada pelas apresentações ao vivo em espaços como galerias de arte e encontros de coletivos culturais em Nova York. Dessa forma, a sintonia entre os dois, orientada majoritariamente pela experiência dos palcos, foi redescoberta no ambiente controlado do estúdio ao longo da produção de Center. “Nos espaços onde a gente tocava, muitas vezes, não conseguíamos nem nos escutar direito. Ver as músicas ganhando forma num espaço mais reflexivo nos trouxe mais confiança em testar e experimentar programações e outras coisas”, conta a vocalista.
“Todos nos relacionamos com nós mesmos de alguma forma, e essa relação é definida por elementos muito pessoais – como a fé e a solidão. Compor é como desembaraçar o que está mal definido nesse meio”
Em uma dinâmica de “menos é mais”, as aspirações da banda para um lado mais experimental do rock alternativo vieram da vontade mútua de exprimir o ímpeto feral do caráter meditativo das letras. “Muitas das músicas já estavam escritas antes de começarmos a gravar. Mas, no estúdio, foi possível perceber um lado mais intragável, o que nos motivou a aprofundar nas experimentações”, conta Schmidhauser. Esculpindo as abstrações das letras, as músicas foram tomando forma em composições que ao invés de definirem uma temática dominante do álbum, encarnam uma abordagem mais geral de criação. “Acho que nada foi pensando numa definição específica, até para um registro mais espontâneo mesmo. Todos nos relacionamos com nós mesmos de alguma forma, e essa relação é definida por elementos muito pessoais, como a fé e a solidão. Compor é como desembaraçar o que está mal definido nesse meio”, elabora Grace.
“Alguns pensamentos, quando expressos, ganham mais forma na entonação e na atmosfera do que pelas palavras em si. Sinto que esse álbum é sobre isso”
Mesmo sem definição precisa, os conflitos internos e os respectivos pensamentos fragmentados cadenciam as músicas de Center em momentos murmurantes. Com uma abordagem minimalista e direta, as linhas vocais de Grace trazem versos curtos e repetições que criam uma atmosfera de insistência e vulnerabilidade. A faixa que abre o álbum, “From Which Ground?”, gira em torno da busca por validação, em um cenário no qual o “desejo não realizado” não gera vergonha, mas é um reconhecimento da própria condição humana — imperfeita. Já a quarta faixa do trabalho, “Light Pockets”, evoca a autoexploração numa abordagem não linear, envolta numa dissonância minimalista, pautada por contratempos e floreios dos pratos da bateria de Brian. Ao lado das linhas vocais controladas e estáticas de Grace, a parte rítmica entra como contraponto, ecoando o que é estridente, e dissipando o que é denso nas letras. Partindo de lugares distintos, o duo se encontra na perícia de sintetizar em poucas notas, com intervalos bem marcados entre elas, a claustrofobia emocional que ambienta o álbum. “Por compor há muito tempo, sempre fico pensando em como chegar onde eu quero de modos diferentes, o que pode parecer meio bagunçado para quem vê de fora. Mas também organizar as coisas não é o ponto”, comenta Grace. Mesmo que as letras e melodias sejam de autoria da vocalista, Brian é mais do que providencial na (des)construção proposta no debut. Entre os extremos da volatilidade do noise, Center tem seus contornos mais delicados expressos na adição de instrumentos como o sintetizador de sensor de luz, o kalimba e o chime — todos tocados por Brian Culligan. “Com certeza o que o Brian faz pode ser entendido como composição. Se não é compondo as letras, é preenchendo e dando forma a elas”, comenta sua parceira de banda.
“Tínhamos muito do espírito de garagem, da explosão – um lance mais guitarra e bateria de indie rock. Produzir o álbum dentro de um quarto, mexendo com elementos eletrônicos, nos fez repensar algumas coisas sobre peso e experimentação, além desse espaço do indie rock mais tradicional”
Se a virtuose do disco aparece em momentos de contraste entre o peso eletrônico e instrumentos cintilantes, a aspiração caótica vem pela inserção de elementos como frequências de rádio e até uma furadeira. “Não foi tão complicado ou elaborado como parece. Na verdade, pensei na furadeira porque queria trazer uma sensação perfurante em algumas músicas. Então, bem, foi pura associação mesmo”, explica Cullingan. Rodeando sonoridades do rock alternativo e do eletrônico experimental, a dupla de amigos compartilha a inspiração no alt-folk de nomes como Wilco e Broken Social Scene, como forma de coesão entre o caótico e o dramático. “Na época da faculdade, falando sobre onde queríamos situar nosso som, o ‘Yankee’ (Hotel Foxtrot) sempre fazia parte desses papos. Acho que pela ambientação despretensiosa, mas também muito bem trabalhada. O documentário da gravação do álbum também é bem interessante, em como as coisas vão tomando forma no estúdio”, comenta Grace. Se no documentário de 2002 do diretor Sam Jones a cisão entre Jeff Tweedy e Jay Bennett impulsiona a criatividade, no Or Best Offer a dinâmica colaborativa em dupla é que dá sentido ao disco. “Por mais que eu escreva sozinha, sobre coisas pessoais, estar em uma banda, tocar ao vivo, é o que me dá sentido em fazer música. Estar com outras pessoas em geral”, reflete Grace.
Ao mesmo tempo em que o duo se aproxima do noise e da no wave em sua estreia, os rótulos não são exatamente um parâmetro para entender a identidade da banda. Assim como outras bandas formadas em ambientes universitários, o Or Best Offer nasceu quando os membros já tinham certa noção estética e musical a respeito de como abraçar e fugir de certos termos, priorizando um meio do caminho que fuja do óbvio sem ser exatamente pretensioso. “Eu cresci em Austin (Texas), que é uma cidade bem musical, então desde cedo eu sempre vi a música como um retrato do momento. Tipo, quando somos mais novos, gostamos de ver os mesmos filmes e ouvir as mesmas histórias, mas depois percebemos que tem muita coisa no mundo, que também nos despertam curiosidade”, expõe a artista. Tanto Grace quanto Brian estudaram música na New York University, ambiente que colocou a dupla em contato com outras estéticas além do indie e do folk – ambos, entretanto, ainda com valor afetivo para os dois. “É um espaço que traz novas experiências, sem dúvida. E também, você vê outras finalidades para a música. Além da música pop, como nas trilhas cinematográficas, tem recursos e possibilidades que às vezes são mais intuitivos que algum riff de indie rock que tomamos como experimental”, reflete Brian.
Assim como o indie rock se expandiu para direções ecléticas, cruzando com outros estilos pela cultura de produção em estúdios caseiros — chamada por alguns de bedroom pop — o afastamento do rock como meio primário para a música alternativa foi essencial na construção de Center. “Tínhamos muito do espírito de garagem, da explosão, num lance mais guitarra e bateria de indie rock mesmo. Produzir o álbum dentro de um quarto, mexendo com elementos eletrônicos, nos fez repensar algumas coisas sobre peso e experimentação, além desse espaço do indie rock mais tradicional”, relembra Grace. A disrupção caseira da dupla que permeia as sete músicas ao longo dos 36 minutos passa por lugares, de uma só vez, melodiosos e dissonantes, como se ouve em trabalhos de nomes recentes do indie rock como Horsegirl e Friko. E, ao mesmo tempo, tangencia o eletrônico tempestuoso de nomes como Xiu Xiu. De certa forma intransigente, o caráter vanguardista do álbum de estreia da banda do Brooklyn vem mais da autoprovocação que permeia as músicas do que de escolhas estéticas. “Não ficamos refletindo muito sobre decisões específicas. Eu montei o espaço com vários canais abertos para captar tudo o que fazíamos e a partir daí fomos percebendo a profundidade que as músicas foram tomando”, conta Brian.
Num percurso em que o caminho traz mais resoluções que o destino, Center apresenta um duo no labirinto entre o mundano e o transcendental, por meio de uma busca por significados que rompem a linguagem. “Alguns pensamentos, quando expressos, ganham mais forma na entonação e atmosfera do que pelas palavras em si, sinto que esse álbum é sobre isso”, conclui Grace.