Os nortes de Victor Xamã

Após dois álbuns de estúdio, o manauara retorna com EP que reflete sobre o isolamento social e os efeitos da mudança de Manaus para São Paulo; ele destrincha o projeto, fala de inspirações em Belchior e das maneiras com que a cidade pode constituir o indivíduo

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Fotos: Uatumã / Isa Hansen

O disco Janela (2015) seguido de Verde Esmeralda, Cinza Granito (2017) afirmaram o manauara Victor Xamã como uma das pérolas mais notáveis vindas do norte do país no Rap brasileiro. O regionalismo e o orgulho amazonense sempre estiveram presentes em suas obras, mas, dessa vez, a missão foi criar fora da terra natal. O EP Cobra Coral (2020), mais recente lançamento do artista, narra os desafios enfrentados ao se mudar para São Paulo – e o subsequente início do isolamento social.

No processo de mudança de Manaus para São Paulo, algumas participações em faixas de outros artistas ficaram pendentes. Assim que teve tempo, adquiriu um microfone para gravar os trabalhos, porém, a compra não chegou. Recorreu ao amigo e também rapper Dro, que o emprestou um microfone. No decorrer dessas gravações, começou a surgir um conceito de trabalho na mente do rapper. Victor conta que, após se mudar para São Paulo, teve a oportunidade de fazer apenas um show antes da pandemia, e a gravação de Cobra Coral veio como inspiração e necessidade. “Uma válvula de escape para colocar na mente que não estava cem por cento parado, que tenho que me manter firme com meu plano, meu propósito de vida”.

Victor Xamã entende a cobra coral como um animal que simboliza solitude, além de uma metáfora de avidez pela criação e o desejo de fazer sua voz soturna rastejar por todo o Brasil. “Há pessoas que conseguem driblar a ansiedade ou depressão fazendo algumas coisas, e, para mim, é a música. Uma fuga dos sentimentos ruins ou então entrar neles e destrinchá-los”, pontua o MC. Batemos um papo com ele para destrinchar, faixa-a-faixa, o EP Cobra Coral.

TODOS OS DESEJOS NO TEU CORPO NU

A princípio, eu tinha feito um beat e não sabia o que fazer com ele, mas convidava a um novo desafio. Ele é mais soft [em relação as outras músicas de Xamã], bem calmo e acho que é uma das músicas que mais conversam com a questão do isolamento social. Traz essa conversa intensa trabalhando com cores, cheiros, tatos, lembranças… O tema principal é que o futuro sempre vai trazer um frio na barriga. Foi uma das faixas que mais teve participação – teve a voz da Gabi Farias, sax do Elizeu Costa, guitarra do Rafa Tronxo – e em nenhum momento eu direcionei. Enviei a música para todos e disse: fica totalmente aberto para vocês colocarem um pouquinho de cada um. Foi um processo criativo orquestrado por todo mundo que participou da faixa.

Essa frase “eu tô trancado, mas a mente não tá” é clichê pra caralho, mas usei de propósito. Essa incerteza é algo clichê porque todo mundo está passando pela mesma coisa. Não é fácil sair da sua terra com seus ciclos confortáveis para um novo desafio. Só que isso sempre me instiga, gosto de viver o novo, conhecer novas coisas. Quando a gente olha para trás, parece que os momentos bons ficam mais evidentes.

CÉDULAS DE DIFERENTES TONS

Monkeybuzz/João: Eu gosto que o áudio que abre essa faixa parece uma saída da música anterior.

Esse áudio é do DJ MaQ, na verdade são dois áudios: onde eu moro, tenho umas vizinhas que riam alto e brincam muito, eu tinha que esperar elas pararem para eu conseguir gravar. Nesse dia eu tava mandando um áudio pra um amigo e elas começaram a brincar. Vi que daria um contraste foda das crianças com o áudio do MaQ com sotaque manauara. Casa muito com o tema da faixa.

Nessa faixa você pergunta muitas coisas…

Sempre quando eu faço perguntas nas minhas músicas são para mim, também. Até hoje eu não sei se busco alívio para mim ou para os outros. Eu falo algumas coisas que são minhas e talvez a pessoa não viveu exatamente o que eu vivi, mas existe a identificação, acho massa. É como um quadro abstrato.

De onde veio a ideia do segundo verso, que é mais um poema?

Eu tinha escrito isso e ele não é um rap mesmo, tanto que ele não é musicalizado. Fala sobre as pessoas adotarem uma postura de muralha impenetrável, a mentira de que nada atinge elas. Ele conversa sobre isso, fazendo alusão sobre contexto político e atual do mundo sem soar aquela coisa batida. Conversa sobre diferentes verdades, falsas expectativas, decisões – vários temas que estão relacionados.

Você menciona “Folhas de Nadi”, “Kundalini” em Verde Esmeralda, Cinza Granito… o quão próximo você é desses conhecimentos?

Eu visitei diversas crenças sem uma primeira eucaristia. A presença de uma coisa extra-sensorial é uma energia viva. Já teve uma época em que me aprofundei, mas hoje é uma coisa mais de curiosidade mesmo. Meus pais sempre foram bastante liberais com a questão de crença. Meu pai é do candomblé e minha mãe da igreja messiânica, uma religião oriental. Trago muitas coisas deles. Não é um conhecimento que tenho propriedade de especialista, mas com o qual me identifico.

Ainda sobre lembranças. Qual a importância do desapego na mudança?

A cidade reflete no indivíduo. Quando você sai de um ponto para outro você nunca mais vai ser o mesmo e eu falo que aceito isso. Não é necessário desapegar de todas as lembranças, tudo que a gente faz soma para outras experiências. Porém, as vezes é bom esquecer alguns preceitos para estar aberto para novas possibilidades.

“Até hoje eu não sei se busco alívio para mim ou para os outros. Eu falo algumas coisas que são minhas e talvez a pessoa não viveu exatamente o que eu vivi, mas existe a identificação. É como um quadro abstrato”

COBRA CORAL (feat. Davzera e Yung Buda)

Sempre quis colocar Davzera e Buda numa faixa. Para mim, são os mais sujos em letra, personalidade. E bem underground. O Buda é muito ele, tem as coisas que ele pensa e a forma que ele interage sem papas na língua com o público dele; o Davzera é da mesma forma bem “foda-se” e isso conversava sobre a cobra coral, mas, ao mesmo tempo, a música não tem um tema base, é um free versezão.

Nessa faixa você usa um tipo de sample de flauta que ficou muito popular nesses últimos anos, principalmente no Trap. Como foi a produção?

Quando eu tava produzindo o Janela eu conheci o trampo do Martin Denny, que faz parte de um estilo de música chamado “Exotica”, muito usado em filmes antigos como trilha sonora e tal. Indo atrás de samples achei um bem essa cara, mas que não era a flauta óbvia de três ou quatro notas de instrumental de Trap. Ela vem tipo dançando com a bateria e a princípio era só um loop, escrevi em cima e mandei pro Davzera. O que me pegou no sample foi a transição das notas, parece que vai fugir do tempo, mas não foge.

SAN PABLO

Fala do que estamos conversando até aqui: possibilidades. A sensação que eu tenho é que em Manaus eu já fiz tudo que tinha para fazer, tanto que no meu trabalho sempre falo sobre Manaus ou o regionalismo, mas não de uma forma caricata como costumam vender o Amazonas. Fala sobre São Paulo e como está a minha mente perante minha vinda pra cá. Tenho a impressão de que as coisas acontecem muito rápido aqui, as pessoas não perdem tempo. Em Manaus acontece um pouco mais lento. A cidade reflete no indivíduo. A partir do momento que você pisa em SP você sente a velocidade, esse “sem tempo pra perder tempo”, você olha pro lado e parece que todo mundo tem um compromisso importante pra caramba. Tem que  com as coisas bem amarradas mentalmente para o tempo pessoal e o tempo da cidade não se confundirem.

“A partir do momento em que você pisa em São Paulo, sente a velocidade, esse ‘sem tempo pra perder tempo’, você olha pro lado e parece que todo mundo tem um compromisso importante. Tem que estar com as coisas bem amarradas mentalmente para o tempo pessoal e o tempo da cidade não se confundirem”

AMANHECEU NUBLADO (faixa bônus)

O João Alquimíco e o Mayer colocaram essa faixa no Spotify recentemente. Estão no corre comigo há muito tempo, o Alquímico eu conheço desde o pré-escolar, sempre compartilhamos os sonhos juntos. Essa música que a gente fez junto foi muito divertida e faz parte do trampo deles, eu vi que tinha um potencial de apresentar pro público esses nomes. Fala sobre o sentimento mais comum de todos, o romance. As pessoas gostam de conversar sobre… Foi uma questão estratégica colocar no meu EP. Gosto de sempre trazer uma rapaziada que veio comigo.

Como você analisa essa questão de trazer outras pessoas da sua área contigo?

A minha avó falava quando eu fazia alguma coisa e queria mostrar pra ela: “você não fez mais que sua obrigação”. Se hoje eu tenho uma visibilidade, porque não dar uma oportunidade para pessoas que são tão talentosas quanto eu? E o rap, a música, o sucesso é um castelo de cartas, tá ligado? Hoje eu posso estar em evidência e amanhã não, tenho plena ciência disso. Claro que nunca vai ser suficiente, vão ter pessoas que vão achar que você poderia fazer mais. Mas é o que eu tento fazer, o que me faz bem. Eu quero que não só Manaus, mas o Norte inteiro esteja em evidência em questão da arte. É muito raro as pessoas quererem consumir coisas do Norte sem aquele estereótipo, sabe?

Eu gosto dos seus raps, porque acho que você tem uma preocupação lírica genuína, está sempre tentando dizer alguma coisa. O que você pensa sobre essa questão lírica, muito comentada no Rap nacional nos últimos anos?

Não é uma coisa que eu forço para tentar parecer lírico ou pro meu rap ficar mais interessante, não. É a forma que eu escrevo desde quando eu iniciei. É meu estilo e como eu faço, e eu não julgo na cena tipo “ah, esse som não é lírico, não sei o quê”. Tem vários sons de rap que a proposta não é mesmo essa.

E é bom que existam também.

É interessante pra caramba isso. Mano, eu me amarro em falar merda, gosto de ouvir umas coisas tosca… Só é foda quando a pessoa força. Eu nesse trampo tentei ser um pouco mais simples, assim. Eu tava escutando bastante Belchior, o disco Alucinação (1976). Eu vi que ele é tão simples e direto, muito simples mesmo. Não precisa ficar jogando inúmeras referências que ninguém vai saber o que é, ele fala sobre a vida só que de uma forma tão certeira que se torna complexo. Tentei explorar isso, só que do meu modo.

Além de Belchior, a mudança… O que tem te inspirado por esses tempos?

Mano, estou gostando muito de estudar a parte de produção de áudio, mixagem e masterização. Tanto que no trampo eu fiz questão de fazer ambos em todas as músicas, quis colocar esse conhecimento a prova, uma coisa que não fiz nos discos anteriores. Assinei os beats, mas não a finalização.

E a sua mensagem para o mundo… Qual é?

A arte é “errar quando bem entender”, mas de uma forma consciente. Aprender com o seu erro. Acho que a gente vai evoluindo. Esse trampo trouxe uma nova proposta, uma forma um pouco mais madura e até um pouco mais comercial de apresentar minha música. Podem ficar tranquilos que esse ano ainda vem trabalho. Estou com sede de música, vontade de criar. Espero que consumam mais e mais o meu trampo e agradeço todo mundo que acredita, escuta as músicas e presta a atenção e a oportunidade de trocar essa ideia com o Monkeybuzz.

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ARTISTA: Victor Xamã