Chamar Arnaldo Baptista de músico não basta – é uma lenda. Ele fundou Os Mutantes, uma bênção compartilhada apenas por Rita Lee e Sérgio Dias. É referência, é inspiração, é detentor de um legado psicodélico no país e no mundo. Arnaldo é artista visual, com cores, texturas e temas que dialogam diretamente com seu trabalho musical. E ele é também escritor, com um recente lançamento triplo: Ficções Completas, livro que veio ao mundo nos últimos instantes de 2023 com dois contos (O Abrigo e The Moonshiners) e um romance (Rebelde Entre os Rebeldes), todos enraizados na ficção científica.
Eu gosto do absurdo, porque é A. B. Surdo – Arnaldo Baptista surdo.
Falando ao Monkeybuzz, ele é bem-humorado, empolgado e tão livre quanto sua arte. Arnaldo responde em frases curtas, mas sempre carregadas de significado e uma poesia natural, corriqueira, uma arte espontânea que está sempre presente. Às vezes, ele olha distraidamente para o horizonte enquanto formula suas ideias e sempre dá um jeito de achar graça e fazer alguma piada dentro de qualquer pergunta. Ele interrompe o assunto e diz:
Eu gosto de entrevista porque entre a vista é o nariz, e o meu é grande porque o ar é de graça.
E cai no riso.
Eu acho que a palhaçada é importante. É preciso deixar correr aquilo que a gente gosta.
Escutá-lo conversando – ou receber suas palavras em forma de entrevista – gera o exercício mental de acompanhar um raciocínio de vida própria. E nos dá uma nova compreensão de como suas músicas e quadros foram feitos. O mesmo processo se aplica à leitura do livro, com parágrafos de grande dinamismo e histórias que se movem com agilidade entre uma frase e outra, ao lado de descrições minuciosas do cenário e das ideias científicas que regem aquelas realidades.
Os três textos que formam Ficções Completas foram escritos na década de 1970, após Arnaldo deixar Os Mutantes, e foram encontrados anos depois sem uma memória clara do autor de como, onde e quando eles nasceram. Rebelde Entre os Rebeldes já havia sido publicado anteriormente, mas a editora Grafatório Edições optou por nos dar uma versão bastante próxima dos manuscritos do artista, sem grandes interferências.
Pablo Branco assina a direção gráfica do projeto, que tem ilustrações criadas por meio de inteligência artificial. Essas criações são assinadas pelo supercomputador Horácio, um dos personagens do livro. “Para definir a linguagem visual, exploramos referências que se relacionam com a estética dos textos”, explica o designer. “Essas referências incluíram as obras do próprio Arnaldo, capas de discos, coleções de literatura pulp e ficção científica, filmes futuristas, bem como temas como computação, realismo científico, misticismo, biomorfismo interestelar, psicodelismo e cosmologia”.
Todas essas palavras juntas começam a dar conta de entendermos melhor o que compõe o universo criado por Arnaldo Baptista para esses textos. Ele diz que seu clássico Lóki? (1974) é uma boa trilha sonora para se escutar enquanto lemos o livro: “Porque tem a ver com meu lado psicodélico, meu lado experimental e meu lado aventureiro”.
Como foi ler esses textos e revisitar seu passado?
Foi interessante, porque ele é tão múltiplo que cada parte me lembrou uma peça do meu modo de ser e encarar a vida e a evolução, no sentido total.
É assim também quando você escuta Os Mutantes ou seus primeiros discos?
Não, é bem diferente. É mais trabalhoso entrar em literatura. Com a música, é mais fluente, mais fluido, eu vou lembrando outras coisas. Lembro dos instrumentos, da inspiração que eu tinha no momento, o lado que leva adiante a sorte, se os instrumentos estão em ordem, a pesquisa.
Há bastante música no livro, destaco o sintetizador “com sons que faziam os humanos sonhar” (em The Moonshiners) e o teclado de Mauro em Rebelde Entre os Rebeldes. Para você, como a música faz parte desses textos?
Acho que é do lado de mesclar o viver e o sonhar, e o que impulsiona a gente para tudo isso.
Sua escrita é solta e colorida, me faz pensar que a sua maneira de escrever é também psicodélica.
Ah, interessante… O lado que flui em mim como escritor tem a ver com papai, que estudou até o quarto ano primário e escreveu quatro livros. Então, vou deixando fluir o lado onde a métrica do meu consciente se encaixa com a métrica da tecnologia.
Quanto do seu pai está neste livro?
Eu acho que não tem muito, mas também não tem pouco. Ele era muito romântico, idealista ao extremo. Acho que a fusão entre eu e ele… Acho que é na poesia que a gente se encontra. No sonho, no ideal.
Você acha que o mundo hoje se assemelha àquele de quando esses textos foram escritos?
Eu acho que é tudo uma questão de condição humana, das nossas escolhas. Por exemplo, a guerra sempre teve função com religião. E hoje, aquele maluco da KGB quer controlar o mundo.
Qual o papel da arte nesse contexto?
Isso é importante. Não existe nada de proibido na arte, porque ela é livre. Nesse sentido, a gente pode deixar a consciência andar com asas.
“A arte é livre – a gente pode deixar a consciência andar com asas”
O que te interessa na arte dos nossos dias?
Instrumentos bagunçados – como um sintetizador e alto-falantes que têm atrás outro alto-falante trabalhando ao contrário, então a caixa acústica é ao contrário do som. Fica simbiótico, alguma coisa acopla a música ao meio ambiente. É isso o que eu quero na música, o total. Eu agora tenho um amplificador valvulado ligado em dois alto-falantes de 18 polegadas e às vezes eu sinto o mínimo que nós seres humanos conseguimos escutar, que é 16Hz. Então, os falantes fazem aquela suspensão acústica e fica uma delícia, parece que a sala está vibrando.
Como é escutar Os Mutantes hoje?
Ah, é uma coisa interessante. A gente se deixa levar pelo lado que impulsiona a criatividade, no sentido que o lado musical é total. E vejo a evolução do Sérgio comparada à minha e da Rita Lee.
E os seus discos solo?
É muito interessante, porque eu passo a entender esse lado que eu acabei de falar de instrumentos mais esquisitos. Então, lembro que no meu LP eu usei mellotron, sintetizador, piano e outras coisas a mais que às vezes pintavam na música e impulsionavam a gente a outro lado, como cowbell, músicas estapafúrdias, ou Banda de Pífanos de Caruaru… Essas coisas.
“Em criatividade, fico querendo saber se a inteligência artificial consegue fazer música, poesia, se ela consegue administrar os egos de todo mundo. E quero saber: inteligência artificial tem ego? Eu não sei”
As ilustrações do livro são assinadas pelo robô Horácio. Como foi trabalhar essa ideia?
Puxa, não dá para descrever o quanto eu gostei no sentido em que a minha mente parece que fluiu e parece que se juntou com a do robô, e fizemos umas coisas bonitas, deliciosas de curtir.
O que você acha do medo que as pessoas têm de inteligência artificial?
São pessoas muito complexas que pensam que é como se um autômato fosse dominar o mundo, algo como o Hal de 2001 – Uma Odisseia no Espaço, que faria algo em função dele. Mas eu acho que quem programa a inteligência artificial é quem vai mandar. Eu acho interessante, eu não sei qual será o sexo da inteligência artificial. Em criatividade, eu fico querendo saber se ela consegue fazer música, poesia, se ela consegue administrar os egos de todo mundo. E eu quero saber: inteligência artificial tem ego? Eu não sei.
Me chamou atenção como as três histórias tratam de famílias, de pessoas tendo filhos.
Isso é bom, porque o lado família envolve estabelecimento de núcleos habitacionais menores. Tem a ver com a continuação da espécie humana.
Também notei que elas trazem personagens masculinos que parecem buscar companhia, todos muito solitários.
Isso é muito interessante, tem a ver com a gente, né? Porque a gente nunca está satisfeito com o que é suficiente. Então, a gente pensa em um terceiro ou um quarto sexo, ou um lado que satisfaria o nosso subconsciente totalmente. Mas eu acho que a gente tem que procurar sempre encontrar o que nos satisfaz.
O que te move artisticamente hoje?
A pesquisa. Pesquisa em instrumentos, em insetos, em filosofia, em história, em motivação.
O que é uma arte sem pesquisa para você?
É, por exemplo, o Roberto Carlos, que faz uma coisa careta e leva o mundo inteiro aos pés dele.
E como é para você ser um escritor que tem ouvintes?
É muito importante, espero fazer jus ao interesse que as pessoas voltam à minha mente.