Playlist da Vida – Kamau

Da rádio às reuniões com KL Jay (na rua Paranabi), de Racionais a A Tribe Called Quest: os 10 sons que influenciaram a carreira e a vida de uma lenda do Rap nacional

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Fotos: Divulgação

Playlist da Vida é um quadro em que convidamos artistas e personalidades do mundo da música para escolherem as 10 músicas mais marcantes de sua vida.

 

De 1997 para cá, Kamau se tornou um nome bastante ouvido entre os aficionados pela arte de juntar batida e rima. Do primeiro grupo, o Consequência, passando pelas contribuições ao célebre Quinto Andar, até o ano de 2020, com o single “Beat Torto, Papo Reto” e a rima afiadíssima da odisseia de “Poetas no Topo”, o paulistano amplifica a sua relevância no Rap nacional. Mais do que isso: Kamau é um bastião da cultura Hip Hop no Brasil.

O MC, que não tem personalidade dupla e é “Marcus rimando e Kamau vivendo também”, descreve o que faz como música em primeira pessoa: “Falo de mim, do que eu sou, do que eu vejo, o que eu penso e desejo para fazer minha parte”, citando o refrão de “Parte de Mim”, do clássico Non Ducor Duco (2008). O disco é um dos grandes registros do Rap nacional nesse milênio e, em uma época na qual o gênero era bem mais restrito a nichos do que hoje, foi elencado pela Rolling Stone como um dos 25 melhores daquele ano.

“Eu geralmente chego no equipamento como numa folha em branco e vou puxando elementos. Começo ouvindo um disco em vinil. Sampleio algo que pareça promissor e recorto alguns pedaços. Aí bato nos pads (da MPC) cada recorte e imagino um jeito de sequenciar diferente do original. Quando acho essa sequência eu gravo e vou procurar os elementos de bateria. E por aí vai. Às vezes vai longe, às vezes percebo que não é o momento, salvo e parto para uma próxima. Agora a rima vem nos momentos mais aleatórios possíveis. Raramente eu paro pra me concentrar em rima hoje em dia. Até mesmo pra não forçar a escrita.”

Perguntamos a Kamau quais são os dez sons que marcaram sua trajetória de vida e influenciaram seus mais de vinte anos de carreira como MC, produtor, beatmaker e, sobretudo, um amante do Rap.

Com a palavra – que ele domina tão bem –, Kamau:

1. Thaide & DJ Hum – “Corpo Fechado”

Com certeza o primeiro “Battle Rap” que eu escutei. Imagina um adolescente no final dos anos 1980, escutar uma música que dizia: “Me atire uma pedra que eu te atiro uma granada…”?! A gente imagina a cena igual a seção “Pé da Letra” da revista Mad. Foi um baita impacto, mas eu com certeza não imaginava o que estava por vir do Rap na minha vida.

2. Racionais MCs – “Tempos Difíceis”

O Racionais foi e é minha grande inspiração no Rap. Ouvir um Rap tão contundente feito por gente da minha área (KL Jay e Edi Rock) com certeza fez uma enorme diferença no meu jeito de ouvir Rap desde aquela época. Me lembro da alegria do KL Jay quando trouxe o clipe dessa música pra casa e assistimos. Era uma vitória nossa. De todos que frequentavam aquela casa na Rua Paranabi.

3 . De La Soul – “Me, Myself and I”

De La Soul marca uma era no Rap no mundo todo. Mostrou alternativas novas para se fazer Rap antes de rotularem o “Rap Alternativo”. O clipe de “Me, Myself and I” mostra que eles eram os estranhos da escola. E pessoas como eu, várias pessoas se identificaram bastante. Eu gostava de muitos raps. Mas eu me enxergava mais em alguns. De La Soul com certeza estava nessa lista.

“De La Soul marca uma era no Rap no mundo todo. Mostrou alternativas novas para se fazer Rap antes de rotularem o ‘Rap Alternativo’. O clipe de ‘Me, Myself and I’ mostra que eles eram os estranhos da escola”

4. Public Enemy – “Fight The Power”

Assistir Faça A Coisa Certa [clássico de Spike Lee, de 1989) na época foi fundamental pro pensamento do pessoal com quem eu andava. Era meu “pessoal do Rap”, que era bem diferente do pessoal do skate, mas era com quem eu mais aprendia. Aprendia a ser eu, a ser um jovem preto na Zona Norte de São Paulo no final dos 1980, início dos 1990. E “Fight the Power” era o hino que veio desse filme, feito por um grupo que já admirávamos muito. Meu conhecimento de inglês surgiu por conta do Rap. Eu tentava cada vez mais entender o que era dito nas letras e assim aprendi dois idiomas: o inglês e o do Rap. E o que é dito nessa música me abriu muito a mente.

5. Racionais MCs – “Voz Ativa”

Racionais era nossa “versão” do Public Enemy. Em vários sentidos. Na semelhança, nos temas, na importância, na sonoridade. E “Voz Ativa”, pra mim, veio como “Fight The Power” cantado em português. Eu me lembro que na época o grupo estava começando a ganhar uma notoriedade e eu estava na Biblioteca Pública perto de casa quando eles tiraram a foto da contracapa. E a escola que tinha ao lado da biblioteca estava agitada com uma galera indo tirar foto com eles. Aí ouvi uma menina pedir uma caneta pro funcionário da biblioteca para pegar um autógrafo. E esse funcionário tinha acabado de me perguntar quem eles eram. Ele perguntou pra ela se ela sabia quem eles eram. Ela apenas disse: “não sei”. Mas falaram que eles são alguma coisa então vou lá pegar autógrafo.

“Racionais era nossa ‘versão’ do Public Enemy. Em vários sentidos. Na semelhança, nos temas, na importância, na sonoridade. E ‘Voz Ativa’, pra mim, veio como ‘Fight The Power’ cantado em português”

6. A Tribe Called Quest – “Electric Relaxation”

A Tribe Called Quest é meu grupo favorito. Midnight Marauders é meu disco favorito deles. “Electric Relaxation” é minha música favorita desse disco. A sonoridade desse disco como um todo me guia até hoje na arte que faço. É um disco com uma variedade de tópicos, fontes sonoras e referências que soa como um filme pra mim. Talvez seja o primeiro disco dos que eu coloco naquelas listas de “Discos pra ouvir inteiro sem pular nenhuma faixa”.

“Electric Relaxation” fala de mulher e sexo, mas não soa como tal. O clipe não passa essa imagem pra quem não entende bem o idioma. A contagem do loop principal difere do 4/4 tradicional. Pra mim, é obra de arte das melhores. Me inspira sempre.

7. DMN – “Mova-se”

DMN é fundamental na minha formação como pessoa, antes de MC. E “Mova-se” tá lado a lado com “Voz Ativa” no meu alicerce. LF, Xis, Elly e Slick se tornaram meus aliados, além de professores, com o passar do tempo. A mensagem é nítida e direta. Despertador pros que dormiam. Acordado, não perdi essa aula.

“DMN é fundamental na minha formação como pessoa, antes de MC. A mensagem é nítida e direta. Despertador pros que dormiam. Acordado, não perdi essa aula.”

8. Souls of Mischief – “93 ‘til Infinity”

As trilhas sonoras dos vídeos de skate eram fonte de Raps diferentes dos que eu ouvia na casa do KL Jay. Eu tinha ouvido “Mistadobalina”, do Del Tha Funkee Homosapien, no rádio, mas no vídeo da Plan B eu ouvi outras duas músicas dele e uma delas apresentava sua crew: Hieroglyphics, formada por Casual, Pep Love, Extra Prolific e Souls of Mischief. Pouco depois ,eu vi esse clipe do Souls no Yo! MTV Raps e lia toda matéria que eu podia nas revistas que chegavam. Tudo isso bem antes da internet ser acessível a nós. E ainda hoje fico espantado como essa música, esse disco e esse grupo acertaram no título. Realmente, de 93 pro infinito.

9. MRN – “Noite de Insônia”

O rádio era um dos melhores jeitos de ouvir música além da já citada casa do KL Jay, principalmente as nacionais. Me lembro de esperar tocar essa música no Projeto Rap Brasil sempre que possível e sempre chapei na ideia e melodia dessa música. O disco do grupo formado por Nill, Fresh e Junior também foi bem importante nessa fase da vida e eu nem era da madrugada. Quando comecei a fazer os rolês noturnos, já com 18 anos, pude conhecê-los e ver essa música ao vivo. Chapo no sample e na letra.

10. Nas – “Memory Lane”

Eu tenho uma afinidade com Raps que me transportam tanto no tempo quanto no espaço. Seja para o futuro ou pro passado, para outro bairro ou outro país, é sempre uma viagem boa. “Memory Lane” faz parte de um dos melhores, se não o melhor, disco de estreia de um MC até hoje. E ela ali no meio do disco me fazia imaginar o Queens onde Nas vivia e querer um dia estar por lá fisicamente. E, mesmo com pouca vivência aos 18 anos, eu já fazia essa viagem mentalmente sempre que possível. Agora mais velho eu pude ir a New York e viver um pouco disso. E pretendo voltar em breve.

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ARTISTA: Kamau