Por Que Morrissey Se Tornou Um Pé No Saco

Saiba mais a longa trajetória do líder do The Smiths, desde a banda até o projeto solo

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Eu estava lá em 1985, provavelmente estudando no meu quarto, quando o rádio – sim, eu estudava ouvindo rádio – tocou uma canção de uma banda desconhecida. The Smiths era o nome dela, a canção, se a memória não me apronta, era This Charming Man. Eu gostei do ritmo, da levada de guitarra, da voz daquele sujeito desesperado, lírico e meio intencionalmente caricato que saía do meu velho rádio-gravador Sanyo. Era diferente de tudo o que me passara pelo ouvido antes e resolvi me aprofundar no conhecimento daqueles tais de The Smiths. Os meses seguintes trouxeram Hatful Of Hollow, disco que trazia singles e lados B lançados pela banda logo após seu primeiro disco homônimo. Pouco depois veio o segundo disco da banda, Meat Is Murder, com título versando sobre uma das grandes bandeiras daquele vocalista exagerado, Morrissey, o vegetarianismo. Além dele, integravam os Smiths o baixista Andy Rourke, o baterista Mike Joyce e Johnny Marr, guitarrista talentoso, discreto e responsável pela grande marca d´água sonora “smitheana”: os dedilhados e citações generosas das seis cordas, emoldurando perfeitamente os lamentos de Morrissey.

Não demorou para comprar o EP que trazia The Boy With The Thorn In His Side, uma nova canção da banda. Era um formato novo, que eu nunca vira lançado no Brasil. Era a antecipação do terceiro disco dos Smiths, já em meados de 1986. The Queen Is Dead chegava com alarde e expectativa. Àquela altura, os Smiths já eram figura carimbada na cena independente britânica, uma espécie de reserva moral, bradando contra monarquia, Thatcher, entre outros temas políticos, mas também falando de amor e de autocrítica. Certamente os Smiths eram sujeitos bem diferentes de seus colegas contemporâneos. Não melhores, mas diferentes. Morrissey tinha influências que remontavam a atores americanos como James Dean e a cantoras de Soul Pop britânicas dos anos 60 bem obscuras. Marr havia trabalhado como balconista numa loja de discos de Manchester, a cidade do quarteto, e a parceria com Morrissey selara o destino dos Smiths no início da década. Agora, em pleno 1986, atingiam uma perfeita noção de composição e domínio do estúdio. Canções como There Is A Light That Never Goes Out ou I Know It’s Over eram bálsamos para ouvidos cansados da mesmice.

Todo esse sucesso não durou mais um ano. Em 1988, após mais coletâneas de singles e lados B (Louder Than Bombs/The World Won’t Listen) e um novo (e bom) disco de inéditas, chamado Strangeways Here We Come, todos lançados no fim do ano anterior, a banda encerraria suas atividades devido a diferenças inconciliáveis entre Morrissey e Marr. O guitarrista participara do recente disco dos Talking Heads, Naked, e, ao que parecia, tal fato teria tornado o clima insustentável entre a dupla.

Esse preâmbulo talvez grande demais, pincelando a carreira dos Smiths, serve para mostrar que eles eram uma banda legal, menos exposta que o U2, por exemplo. Menos hábil que o Echo And The Bunnymen e The Cure, mas capazes de ter seu público próprio e charme destoante, no bom sentido. Morrissey logo embarcou em carreira solo e soltou Viva Hate ainda em 1988, um álbum que parecia gravado pelos Smiths, ainda que a guitarra marcante de Marr se fizesse ausente em todos os momentos. Emplacou dois hits imediatos na parada: Suedehead e Everyday Is Like Sunday.

A carreira solo de Morrissey traz, ao menos, dois grandes discos, capazes de superar suas criações com os Smiths, exceto Queen Is Dead, provavelmente sua obra-prima. Lançados em sequência, Your Arsenal (1992) e Vauxhall And I (1994), entremeados pelo ao vivo Beethoven Was Deaf (1993) mostram todo o esplendor irônico e tipicamente britânico da verve do compositor. Ali estavam canções ácidas, sensacionais, cortesia da presença de sujeitos fundamentais como os guitarristas Boz Boorer e Alain Whyte (desde 1991 na banda que acompanhava o cantor ao vivo), que forneceram uma embalagem musical melhor que os Smiths, mais densa, mais pesada e com fortíssimo acento glam. Your Arsenal é mais irônico e cáustico, cortesia de canções como National Front Disco, We Hate It When Our Friends Become Sucessful ou Certain People I Know, todas funcionando como um bloco de rosnados contra as modernices da vida na época. Vauuhall And I é mais romântico, ainda que o estilo Morrissey de romantismo seja um tanto diferente do usual. Só pela presença do single The More You Ignore Me The Closer I Get, o disco já se justifica. Mas ainda há a beleza cortante de Now My Heart Is Full e Why Don’t You Find Out For Yourself e um senso de coesão raro.

A partir daí, a produção de Morrissey começa a declinar. Southpaw Grammar (1995) e Malajusted (1997) são apenas razoáveis, sendo que o primeiro, quase um disco conceitual sobre … boxe como metáfora para sentimentos, tem duas canções com mais de dez minutos, com pinta de extravagância desnecessária. A exceção para essa regra está na arrepiante versão para Moon River, clássico de Henry Mancini, lançada como single, tema de um dos filmes mais icônicos dos anos 60, Breakfast At Tiffany’s, conhecido por aqui como Bonequinha de Luxo, no qual Audrey Hepburn aparecia para o imaginário masculino mundial. Isso não foi suficiente para impedir os efeitos da baixa repercussão dos discos e fazer nosso amigo entrar em um período de silêncio que duraria sete anos, interrompidos de tempos em tempos pelo lançamento de uma coletânea de hits ou de lados B. Entre 1995 e 2004, foram lançados nada menos que nove discos de todos os formatos e apresentações com agrupamentos de canções de Morrissey, fruto de seu relacionamento difícil com a gravadora EMI.

Os silêncios da música, quando aplicados à lógica “Morrisseyana”, significam falatório e tagarelice sobre os temas que ele mais gosta. Viu sua relação de identificação total com o Reino Unido ser colocada em dúvida ao mudar-se para os Estados Unidos. Encheu o saco de todos com pregações sobre ser vegetariano e, com You Are The Quarry, lançado em 2004, foi saudado como se fosse a volta do messias. O disco fez sucesso, tinha canções interessantes como First Of The Gang To Die mas tinha a produção de Jerry Finn, um cara que ganhara notoriedade pilotando estúdios para Blink 182, Sum 41 e Green Day. Foi seu primeiro álbum para a Sanctuary Records.

Essa volta de Morrissey à atividade o recolocou no mapa de fanatismo do século XXI. Logo foi reidolatrado, alçado à condição de semideus por gente que não tinha uma noção exata do que foram os Smiths ou nunca tinham ouvido a totalidade de seus discos solo. Ele, claro, se aproveitou disso e lançou um belo disco ao vivo, Live At Earls Court, em 2005, no qual leva adiante uma fusão de várias canções de seu repertório, desde How Soon Is Now, de 1985 às recentíssimas Irish Blood English Heart, passando por clássicos como Bigmouth Strikes Again, Shoplifters Of The World Unite e uma cover do balacobaco, Redondo Beach, de Patti Smith. Em 2006, pouco menos de um ano após o lançamento de Live…, Morrissey retornou com outro álbum de inéditas, Ringleader Of The Tormentors. Além da esperteza do título, o disco trazia a produção do grande Tony Visconti, laureado veterano da pilotagem de estúdios para gente tão diferente como Bowie, T.Rex, Thin Lizzy, além da supreendente participação de Ennio Morricone no arranjo orquestral de Dear God Please Help Me. Em meio a esta surpreendente adição de elementos novos à sua sonoridade, o lançamento do disco trouxe típico marketing “morrisseyano”, dando conta de que o roqueiro celibatário, morando de Los Angeles, estava deixando tudo pra trás em direção a Roma (onde o disco foi gravado), pois lá se apaixonara. Em geral Ringleader é autorreferente demais, cheio de citações a momentos e canções de discos anteriores, com uma honrosa exceção chamada In The Future When All’s Well, um raríssimo exemplar glam de otimismo vindo de Morrissey.

Um pequeno hiato de três anos e a saída de Alain Whyte da banda de Morrissey, fez com que ele retornasse à ativa com Years Of Refusal. O trauma maior veio com a morte de Jerry Finn, novamente responsável pela produção, em 2008. Vítima de uma hemorragia cerebral, Finn tem seu nome como produtor do álbum, que veio coeso e importante, saudado pelos fãs como o melhor dos últimos anos. Dois anos depois viria Swords, uma coletânea de – fracos – lados B, além de outra torrente de compilações e coletâneas de sucessos.

Morrissey anunciou há pouco tempo que deve se aposentar no ano que vem. Vítima de problemas de saúde diversos (úlcera, pneumonia, queda de imunidade), ele foi aconselhado por médicos a não excursionar em 2013. Bom dizer que a manutenção do status mitológico do sujeito se dá por conta da intensidade de seus shows. Mesmo assim, sua chatice continua severa e dá novíssimos sinais de crescimento. Recentemente ele sugeriu que Paul McCartney deveria abdicar de seu título de Sir se ele quisesse ser levado a sério como defensor dos animais. Outra recente exigência dele foi o fechamento de uma loja do McDonald’s perto do Staples Center, em Los Angeles, no dia de seu show, além de impor a venda de alimentos 100% naturais nos restaurantes do ginásio. Ao fim das Olimpíadas de Londres, criticou a cobertura da TV britânica e comparou o país com a Alemanha nazista, lembrando sempre que a Inglaterra, especialmente Londres, foi alvo preferencial dos bombardeiros de Hitler na primeira metade da II Guerra Mundial. Também escandalizou seus compatriotas – que o elegeram anos atrás com o maior inglês vivo – posando com a bandeira da Argentina e declarando apoio à transferência do arquipélago britânico para o controle argentino, durante um show em Buenos Aires. Usar camisetas detonando o casal real William e Kate também é um hábito recorrente do cantor, hoje com 54 anos completos.

Como eu disse lá em cima, meus discos prediletos de Morrissey foram compostos em 1986, e no período entre 1992 e 1994. Depois disso, a verborragia do sujeito foi vencendo sua capacidade de ser músico. O que antes parecia servir de combustível para suas letras passou a ser uma torrente de palavrório, distribuída em todas as direções, causando um perigoso efeito Lobão em suas frases e atitudes. A postura sobre não comer carne, suas opiniões sobre o mundo, a modernidade e a própria decisão de aposentar-se parecem ter se tornado meios de chamar a atenção da mídia. Imagino que os ingleses – muito mais acostumados com ele do que o mais devoto fã brasileiro – reajam com enfado e desdém a cada declaração bombástica de Morrissey, como se dissessem, “ah, lá vem ele de novo”. Não sei se há reversão nesse processo, uma vez que o tédio também parece dominar a vida do nosso herói. Tédio para com o mundo, com as pessoas, talvez com seus discos. Talvez seja a crise da meia idade, talvez seja o curso natural de um processo.

O fato é que, ao que tudo indica, Morrissey se tornou um chato, muito além da capacidade de acharmos isso meramente legal. A cada língua nos dentes, lembro-me da elegância irônica de uma canção como “Odiamos quando nossos amigos se tornam bem sucedidos” e penso que isso ficou pra trás, junto com o mundo que havia antes. Triste.

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ARTISTA: The Smiths
MARCADORES: Redescobertas

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.