Pra lá do Cabo da Boa Esperança

Do pontal de baixo ao chifre do continente, artistas do sul ao leste africano entrelaçam tecnologias digitais e práticas autóctones em novas músicas eletrônicas

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Fotos: Faizal Mostrixx - Divulgação

A ideia de uma música eletrônica africana chega a ser ofensiva. Como reduzir a um termo todo um continente, uma miríade de sons que até hoje intriga compositores e pesquisadores, reinvenções como as peças de Francis Bebey e novidades de um futuro em que Chinatowns florescem em capitais que serão, em poucas décadas, as megalópoles do planeta?

É menos problemático falar de músicas eletrônicas africanas. E ainda assim está à espreita o erro, o token sonoro, porque até no plural simples não se chega à amplitude desses novos sons. Isso porque o complexo midiático norte-americano (o disco de Beyoncé para o filme Rei Leão ou a trilha sonora de Pantera Negra) e o fenômeno Afrobeats — um guarda-chuva para o pop eletrônico de artistas como Wizkid — até dão conta dessa ideia, mas são apenas uma outra formatação de uma diversidade sonora.

Um buscando inspiração no eletrônico e nas tradições da África do Sul, outro mais à costa oeste do continente, esses dois polos popularizaram uma certa fórmula eletrônica do continente nos últimos anos. Tanto que ela pode ofuscar a onda de músicos de toda a sorte que se espalha nas terras que vão de Cidade do Cabo ao chifre da África. Na porção sul e leste africana, onde a indústria musical ainda não tem a potência do lado oeste, a produção musical é radical, veloz, autofágica.

“No oeste da África tudo parece Afrobeats. É um mercado enorme, então é preciso ter muito dinheiro, conhecer alguém. No leste, a gente ainda está tentando entender como criar esse mercado”, me disse Kampire. A DJ ugandense é o cromo de ouro do Nyege Nyege. O misto de selo e festival baseado em Kampala, capital de Uganda, tem atraído olhares e ouvidos do ocidente nos últimos anos por reunir no catálogo a vanguarda da música eletrônica local.

"Sempre houve muitos artistas africanos prolíficos. E a África sempre foi berço da música. Mas acho que agora o Ocidente está disposto a contratar e pagar artistas para que eles façam shows, para que eles representem a si próprios, em vez de pegar um ou outro elemento da nossa música" - Kampire (Foto: Sophie Garcia)

Esse papel de farol é dividido por outros enclaves e diálogos regionais. “O House sul-africano pode ter influenciado a música do leste africano, mas eu vejo essa parte do continente com um som mais original, coisas que vêm do Quênia, da Tanzânia, de Uganda. Sons rápidos, coisas bem malucas mesmo”, explica o DJ Cortega. Ele é fundador da Electrafrique, sine qua non do continente africano em matéria de festas de música eletrônica.

O evento ocorre atualmente em Dakar, no Senegal, mas foi fundado no Quenia há dez anos, quando Cortega vivia em Nairobi. “Era uma cena pequena, alguns DJs no Deep House, no House sul-africano”, lembra. Hoje, a festa já conta com uma lista enorme de artistas do leste e do sul da África entre seus convidados, de DJs a instrumentistas como Black Koffee e Blinky Bill.

“Sempre houve muitos artistas africanos prolíficos. E a África sempre foi berço da música. Mas acho que agora o Ocidente está disposto a contratar e pagar artistas para que eles façam shows, para que eles representem a si próprios, em vez de pegar um ou outro elemento da nossa música”, me disse Kampire. “E por outro lado também tem algo de moda. Tendências vão e voltam. A gente tem que aproveitar isso, mas a gente também tem que estar atento para não ficar só na tendência.”

Ethiopian Records

Nome de cena de Endeguena Mulu, Ethiopian Records é um dos principais personagens da onda de artistas etíopes que usam dispositivos eletrônicos em seu processo de criação musical — a Ethiopiyawi Electronic. O movimento não tem a pujança da cena ugandense ou a consistência da cena sul-africana, talvez por se tratar de uma proposta assumidamente vanguardista. A entrada pouco convidativa aos arrivistas mora em In My Sleep, último EP de Mulu, mas ouvir o compacto é como abrir um livro cheio de histórias.

Em “Terraraw”, música que abre o EP, o artista usa a ideia de repetição das loopstations até criar pequenos contrapontos. Os sons concatenados dão num Jazz, mas na marcação de 6/8 da chickchicka — apenas uma das várias formas musicais do cenário cultural etíope. Lembra a proposta de Herbie Hancock em “Watermelon man”, com o sample das flautas do povo Ba-Benzélé, só que é algo muito mais tortuoso, hermético.

A segunda faixa, homônima ao compacto, resume essa toada. Ao compor uma opereta em atos que viajam do 2-step ao drone, Mulu revisita gêneros de música de pista com tudo que a Etiópia pode lhe fornecer.

(Aliás, o Ethiopian Records lançou recentemente um crowdfunding para lançar seu próximo disco. Dá uma olhada.)

Leo Palayeng

Do norte de Uganda, próximo ao Sudão do Sul, vem o povo Acholi (lê-se a-tchô-li). De lá saiu a música que leva o mesmo nome, originalmente um som ritual tocado em grupos de uma dezena de pessoas entre dançarinas e instrumentistas de adungus ou nangas e akogos — respectivamente, tipos de harpas e pequenos pianos de dedo. Leo Palayeng vem dessa tradição, mas é também avançando por sobre (e com) ela que o músico se formou como tal.

No início dos anos 2000, ele e o amigo e também artista Otim Alpha começaram a dar vazão a suas ideias no mundo do FruityLoops. Ao modificar instrumentos e escalas musicais típicos do seu povo e enfiar tudo isso em formato MIDI, um novo mundo se abriu. Nascia ali o acholitronix, a música eletrônica feita a partir de padrões musicais acholis — como bem definiu Pa’Laeng em entrevista para o site Pan African Music.

Em Elephant Dance, último disco de Leo, figuras rítmicas binárias e ternárias se entrecruzam sobre os arpejos velozes das harpas locais. O ulular das mulheres acholis, sampleado, é como aquela sirene dos DJs de Dub: um leitmotiv que informa saídas e entradas de diferentes seções das faixas. A rapidez no andamento das canções é tamanha e tão onipresente, que deixa de ser uma característica marcante. Ela é o ponto de partida para as músicas eletrônicas do leste africano.

Kampire

Provavelmente o nome mais representativo da atual leva de músicas eletrônicas do Leste da África — e, talvez, de todo o continente —, a DJ ugandense Kampire tem um je ne sais quoi. E se você for ouvi-la em busca de transições sofisticadas, frequências sonoras esculpidas no mixer ou malabarismos nas picapes, bem, pode ir embora. Kampire é música. Música com um senso de repertório e viagem sonora que poucos DJs têm, não importa quão técnicos, escolados ou chatos eles sejam.

Ouvir um set da Kampire é tomar um táxi em Dakar ouvindo Ndagga Rhytmic Force e descer rumo à Gana do hiplife, bater nos experimentalismos com funk e kizomba em Angola para chegar ao Congo e atravessar sua densa floresta ao som dos soukous revisitados do KOKOKO! com parada final, é claro, na veloz Kampala — a capital de Uganda. Tudo isso é pontuado pelas melhores produções saídas da diáspora, de produtores parisienses a DJs londrinos. Melhor ainda se você busca mais disso: vale a pena escutar a também DJ ugandense Catu Diosis.

“Eu não quero ser uma embaixadora da música do leste africano”, me disse Kampire. “A música de Uganda é super diversa, e o leste da África é mais diverso ainda. Por isso gosto de tocar tantos diferentes gêneros, não quero ser definida por um único gênero. É com certeza club music, dance music, música eletrônica africana.”

Faizal Mostrixx

Também em Uganda, mas com os pés e o corpo no espaço, Faizal Mostrixx é um happening. O artista dança, produz, compõe, toca e constrói — todas as suas máscaras e vestes de apresentação constituem um show por si. E se sua música soa como a lâmina menos afiada dessa vanguarda africana, sua performance o coloca na ponta da lança. O palco é um espaço de criação amplo para Faizal.

O artista faz parte do coletivo Extra Soul Perception ao lado de outros nomes importantes da atual cena leste-africana, tais como a DJ Hipoteb e a cantora Karun. Foi com ela que Faizal produziu “In My Soul”, faixa que empacota os experimentos do produtor a um formato digerível para fãs do canal COLORS ou frequentadores de festivais de “músicas do mundo”.

O alcance musical de Faizal se sobressai em seu mais recente álbum, Afrosist. Samples que soam como gravações etnográficas são retiradas do alçapão colonialista para ganhar o mundo em colagens sombrias, quebradas, bugadas. As progressões rítmicas de Faizal, seu som verticalizado feito para dançar, o colocam no mesmo lugar de gente como Four Tet. É música eletrônica de pista planetária

Nandele

Ouvir Nandele pela primeira vez e não lembrar de J Dilla significa uma coisa: está na hora de ouvir J Dilla. A referência ao produtor norte-americano não está apenas no EP de nome “Argolas deliciosas” — alô, Donuts. Trata-se de um som eletronicamente deturpado, uma tautologia em que o beat ataca o beat. A máquina deixa de ser tão previsível nas mãos de Nandele.

Seria fruto de uma análise muito rasa, contudo, colocar o artista moçambicano à sombra de outro nome. O trabalho de Nandele tampouco tem um timbre necessariamente local, um exotismo feito para vender pra gringo. É algo global. Beats como “Cosmic Flow” e “Fin o Humano (E O Regresso do BoomBap)” poderiam servir a rappers daqui, de lá, de Los Angeles, Londres ou Tóquio.

Em seu último álbum, Likumbi, Nandele se afunda mais em sua própria história para dar vazão a seu globalismo. O disco é uma ode ao ritual homônimo, prática que marca a passagem da adolescência à vida adulta para o povo Makondo. Em faixas que contam os passos do ritual, como “Horacio Macuacua (Tchamba)”, pairam cliques, tiques, ruídos de arte-som que estariam em uma salinha de museu ou naquele palco do Sónar.

Sisso Records

Pense no funk brasileiro, uma música que surge nos anos 1980, no bojo das primeiras apropriações do hip hop na periferia carioca. Depois de anos, o gênero que tinha seu andamento na casa das 130 BPMs dá um salto para as 150 BPMs. Um mundo novo se abre, porque a velocidade traz novas possibilidades estéticas e discursivas. E é mais ou menos assim que nasceu o singeli, o gênero musical apadrinhado pelo coletivo tanzaniano Sisso.

A música singeli é fruto de um cruzamento tripartite. De um lado, o bongo flava, uma espécie de R&B/hip hop da Tanzânia, lhe serviu de base musical. A rapidez do seu andamento surgiu, em grande parte, como influência do acholitronix. E a tecnologia digital fez o papel de catalisador na produção e popularização do gênero para a juventude local.

A Sisso Records se consolidou como celeiro da versão mais hardcore dessa música desde o início dos anos 2000. Baseado em Dar es Salaam, capital da Tanzânia, o selo/coletivo tem uma prole de DJs e MCs que aterrorizam as pistas com percussões picotadas, texturas 8bit e energéticos jogos de pergunta e resposta. Ouvir o singeli do Sisso é como se sua vida se transformasse num speedplay de Nintendo reproduzido duas vezes mais rápido que o original no YouTube.

DJ Lag

A África do Sul é, como mencionado acima, um dos polos do que se entende hoje por música Pop e eletrônica da África. Seria injusto não prestar contas a pelo menos um dos artistas responsáveis por esse feito. DJ Lag é esse cara. Nascido e criado em Durban, terceira maior cidade sul-africana, ele é o nome por excelência quando se fala de gqom.

Esse gênero musical, que inflama a cabeça dos fashionistas da Boiler Room e congêneres, é uma versão depurada do afro-house (diz-se que em Cidade do Cabo se escuta afro-house até no supermercado). As faixas são empilhados percussivos enxutos, repletos de silêncios, onomatopeias e retalhos de instrumentos emulados no FruityLoops. As raras melodias são uns poucos acordes que, quando surgem, são menores.

O som é, assim, um contraponto à caricatura ocidentalesca do indivíduo africano sorridente, alegre, bafana bafana. O gqom é sombrio, sinistro. E os sets do DJ Lag são a epítome do gênero. Não à toa, o artista é figurinha certa em vários clubes da Europa e os Estados Unidos. O quadradismo esquisito do seu repertório é, de certa forma, uma abertura no espaço-tempo africano que une o minimalismo de Ricardo Villalobos e o techno de galpão da Nina Kraviz.

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