Todo azeite é ela. Em seu disco de estreia, Pratanes, de 25 anos, assina não somente a composição, arranjos e produção musical, mas a instrumentação geral de Azeite (2024). A artista brasiliense produziu as bases de todas as músicas do álbum e desenvolveu as linhas de todos os instrumentos antes de passar adiante aos músicos convidados. Salvo nas faixas “Corpo transitório” e “Sol egípcio”, a musicista também tocou baixo, guitarra e algumas percussões mais sutis, como chocalhos. Tudo saiu do seu quarto, no Distrito Federal, um lugar indefinido, múltiplo e transitório, em que as pessoas estão e não são de lá – e, fatalmente, onde toda uma geração brasiliense se pergunta o que significa ser dali.
“Já tinha feito a produção musical do meu EP Salve, Rainha (2022), mas dessa vez foi um processo menos solitário”, conta Pratanes. “Eu produzi tudo aqui em casa, no meu quarto, que é onde eu estou agora. Desenvolvi todas as bases, produzi, juntei as composições que eu já tinha e aí quando chegava em um esqueleto definido e percebia que gostaria de ter uma instrumentação maior, algo que não conseguiria fazer sozinha – ou porque não tenho o espaço adequado para gravar ou simplesmente porque não sei tocar esse instrumento –, aí entrava em contato com amigos. Acho que uma coisa boa daqui é que Brasília é meio uma cidade pequena grande, em que todo mundo se conhece, então se você precisa de uma coisa, você sabe alguém que faz ou alguém sabe te dizer onde você acha quem faz”.
O processo do disco foi lento e se deu através de trocas. Um convite para uma participação no trabalho de colegas virava uma oportunidade de gravar uma voz do Azeite em um estúdio mais robusto e por aí vai. A capa do disco, de um vermelho molhado de dendê e um busto de gesso vestindo o peito nu da artista brasiliense, também reuniu uma série de artistas do DF. Um deles, o fotógrafo Fábio Setti, já tinha colaborado com Pratanes no média-metragem que acompanha o EP Salve, Rainha!, em que ela mergulha na história da sua família, da migração do Maranhão para o Distrito Federal, ao fazer o caminho inverso e visitar lugares e pessoas a fim de tentar apreender, assim, algo da sua própria história.
“Ela [a Pratanes] queria falar sobre pertencimento, sobre as viagens internas, queria transformar o corpo em armadura e trazer a textura do azeite”, conta Fábio Setti. “A partir disso, trouxemos as cores terrosas do DF e esse busto de gesso carregado de azeite de dendê como uma fortaleza, numa ideia de transformar ela em uma escultura, como uma estátua, parece uma rainha posando para fazerem um busto dela. A direção criativa foi da Julia Kalí e da Pratinha, eu fui só auxiliando, dando ideias e a gente fez a foto aqui no quintal da minha casa. Despejar o azeite de dendê no corpo também foi uma forma de trazer a sensualidade, a liquidez da próxima fase, do novo projeto. Para mim, foi incrível contribuir pra história da Pratinha, que já é uma pessoa que eu acompanho há um tempo e a gente cria em conjunto”.
A relação de Pratanes com o Distrito Federal atravessa o disco do começo ao fim, da profusão de sonoridades de uma cidade composta por pessoas de todo o Brasil até as composições que compõem uma espécie de registro e também de investigação do que é ser de lá. Influenciada por Anelis Assumpção e Jadsa, a escrita de Pratanes encontra seu maior trunfo nas descrições do ordinário. “Eu escrevo desde adolescente e gosto muito da escrita do cotidiano. Um exemplo é ‘Sol egípcio”, que a letra só fala o que passa na frente da vista, de um dia que realmente estava muito quente, muito seco, daí vem o verso seco que racha o lábio e, daí em diante, a paisagem vai se complementando pelas pessoas que estão passando e todo esse movimento da rua”, diz.
Eu conheci o Azeite através da Jadsa. Ela me mostrou o disco e me falou que teve um encontro com você aí em Brasília. E eu queria saber como foi esse encontro.
Pô, que caminho chique, né? Ter chegado logo a partir de alguém tão grandona assim. A Jadsa é inclusive uma grande referência para mim, não diretamente na construção musical, apesar de ter algumas semelhanças, mas acho que principalmente na estrutura de banda e na estrutura de composição. Desde o primeiro vídeo que eu vi na internet da Jadsa cantando, já fiquei meio doida. E foi muito massa esse encontro. Ela tinha vindo fazer o show do Taxidermia aqui em Brasília e a gente conseguiu trocar uma ideia. A gente já tinha se visto antes, mas foi muito mais rápido e eu estava mais nessa posição de fã; dessa vez, a gente conversou e ela já tinha acesso ao meu trabalho também, então a gente conseguiu trocar mais ideia. Foi bem massa. E foi bem novo para mim também – estar nesse lugar de alguém que eu admiro também gostar do que eu faço.
Massa. Quis começar perguntando isso justamente porque me parece muito que a Jadsa e a Anelis Assumpção na fase do Taurina (2018) são referências no seu disco, especialmente na caneta do projeto…
São muito. Acho que Jadsa, inclusive, até um pouco mais no meu trabalho anterior, o EP Salve, Rainha! (2022), que teve um processo de composição mais diretamente inspirado porque eu estava conhecendo algumas músicas do Olho de Vidro (2021) enquanto fazia Salve, Rainha. A Anelis Assumpção é uma referência constante, além até da escrita musical, acompanhando redes sociais, percebo que tudo que ela escreve parece muito construído, articulado, pensando detalhe por detalhe. Isso é uma coisa que eu admiro muito e acho que, de uns tempos pra cá, a minha escrita também tem esse caráter de pensar como as coisas vão ser ditas, para além das coisas que vão ser ditas, sabe?
“Minha relação com a cidade tá meio impregnada no disco. Eu escrevo relatos do cotidiano nessa busca do que é a identidade do Distrito Federal”
E o que você tem lido?
Tô lendo o mesmo livro há alguns meses, que é Um Defeito de Cor (2006), da Ana Maria Gonçalves. É bem pesado. E esse livro, na verdade, acompanhou grande parte do processo de produção do disco, porque por ser um livro denso, que você não lê de uma hora pra outra, a energia do álbum também acabou tendo muito a ver com ele. Comecei a ler quando estava num momento chave da produção do disco, que já tinha várias músicas encorpadas, já tinha um arranjo feito ali, mas ainda tinha muita coisa para fazer. Muita coisa para gravar e para decidir se eu iria botar ou tirar. E aí comecei a ler esse livro e fui completamente atravessada, impactada e comecei a ficar pensando muito nesse contexto de Brasil antigo e de perceber manifestações que estão aqui até hoje, mas pensando num contexto mais inicial delas, um contexto muito mais brutal, assim, muito mais violento, né? E isso foi andando comigo junto da produção do disco. Especificamente “Meus irmãos” tem muito disso. De pensar o passado aqui e agora.
A faixa “No nego vc não dá” também veio nessa onda, né? É uma música que já é cantada aí no DF?
Essa na verdade é uma gravação que eu já tinha há algum tempo no meu celular. Faço parte de um grupo de capoeira aqui no DF e acho que a energia da capoeira também está bem dentro de “Meus Irmãos” desde o primeiro momento em que comecei a fazer a letra. Como a musicalidade é um dos pilares da capoeira, tem alguns dias que em vez de treinar corpo, a gente treina música. A gravação é de um desses ensaios de instrumentação. Não lembro quando foi, mas a gente já tinha cantado essa música algumas vezes, e nesse dia o mestre foi meio que orquestrando a gente; essa gravação já foi a última vez que a gente cantou. Na hora me deu só um estalo de botar o celular no colo e gravar, sem saber, assim, porque geralmente a gente canta um tempão, minutos e minutos, e as cantigas da capoeira também vão sendo contadas, entram histórias improvisadas no meio, então às vezes a música vai crescendo, ficando enorme, mas acabou que ficou um minutinho só. Tinha gente batendo palma, tinha gente no pandeiro, o mestre estava ali no timbal, que embala a música toda, e todo mundo na voz. Foi um momento de muita comunhão, muita alegria, mas na hora que eu gravei não tinha a intenção de que se tornasse nada.

“A minha escrita tem esse caráter de pensar em como as coisas vão ser ditas, para além das coisas que vão ser ditas”
Uma coisa que me chamou muita atenção foram as mudanças de levada dentro de uma mesma faixa. “Salvador” tem isso como característica marcante, essa virada mais rimada. Queria saber mais sobre qual é sua escola de canto e de onde vem essa mudança de flow, se você já rimava antes… Me conta um pouco mais.
Sim, sempre cantei desde criança e escutava muita coisa, geralmente com meu pai, do Djavan até uns hits Antena 1, muito Stevie Wonder e Lionel Richie, só que eu não cantava porque eu não sabia inglês. O que eu cantava era MPB e, quando fui aprender a tocar violão, cantava as músicas que eu conseguia pegar cifra fácil. Hoje em dia, percebo que mantive todas influências negras dessa fase. Pra mim, a grande voz inquestionável que a gente tem aqui é a Elza e Jorge Ben, que é uma referência expressa do disco.
Mais especificamente pro canto, eu tenho como objetivo de conquistar um controle vocal e consciência da própria performance do Moses Sumney, que é dos Estados Unidos. Os falsetes que eu faço em algumas partes do disco têm muito de inspiração de ter cantado muitas músicas dele, que geralmente vão de uns falsetes muito altos e voltam para uma região muito baixa num espaço de tempo muito curto. E acho que tem outro aspecto do jeito de cantar dele que é uma coisa meio preguiçosa até, sabe? De nem sempre me preocupar em fazer a performance vocal ser maior que a melodia – e acho que isso também tem um pouco do jeito que eu acabei incorporando o violão na minha música, do meu jeito de tocar, que é muito mais dedilhado e arpejado do que palhetado, o que vem de uma grande inspiração de fora pra mim que é a Lianne La Havas.
E sobre o flow?
Isso do flow é um ponto delicado. Esse verso de “Salvador” especificamente foi só uma cuspição de desabafo que eu tinha escrito e depois acabei estruturando de uma forma que rimasse. Acho que “Salvador” foi a primeira música que eu fiz inteira que tinha esse momento mais ritmado. Eu reluto muito em falar em flow porque eu não quero me colocar nesse lugar de cantar rap necessariamente porque acho que as pessoas assimilam às vezes um cantar mais versado ao rap. Comecei a pensar nisso também depois que o álbum saiu porque eu vi as pessoas falando em algum momento “a cantora Pratanes de hip-hop” e com certeza tem elementos de hip-hop no disco, para além das rimas, acho que tem vários beats também que tem sub-baixos que são de hip-hop, mas não é um disco de rap. Como produtora, achei interessante essa proposta de acelerar o meu ritmo de pensamento e o meu ritmo de palavras, mas nunca foi planejado ter um álbum com muitas partes versadas assim, acabou que tem em outras músicas e no geral é bem presente no disco.
Achei muito doido que tem uma relação muito intensa com a cidade no disco. Em “Sol egípcio” você canta sobre o tempo seco do DF, e em “Salvador” você diz que “nessa cidade é fácil perder o rumo”. Me conta sobre a sua relação com o DF? Você é daí mesmo?
Sim. E “Brasil RA III” é quase uma ode à Taguatinga, ao Distrito Federal. Sim, eu nasci aqui, mas acho que tem uma coisa geral para essa geração que nasceu aqui que é uma tentativa de entender ainda o que é a cidade e o que é ser daqui. O DF foi e é construído a partir de elementos de vários outros lugares, principalmente do Nordeste. A minha família inclusive vem toda do Maranhão e acho que isso também é uma coisa que está muito no álbum, essa energia de trânsito. A minha relação com a cidade tá meio que impregnada no disco. Porque, como eu te falei, a maioria das coisas que eu escrevo são relatos de coisas do cotidiano, muito nessa busca do que é a identidade do DF: cerrado, tempo seco, clima desértico, pessoas que se conhecem, mas que são difíceis de se conectar, e ao mesmo tempo são pessoas muito incríveis, muito abertas ao ponto em que tem conexões que você fala: “nossa, isso só é possível porque a gente tá aqui porque a gente veio cada um de um lugar e se encontrou aqui”. Acho que o DF é o meio de um fluxo muito grande de pessoas e lugares. Tudo é muito novo, tudo é muito possível de experimentar. Essas duas músicas que você citou têm a característica da cidade muito pela composição, mas acho que o álbum também sonoramente falando tem um pouco disso, dessa profusão de vários sons e lugares, que ainda pulsam aqui por meio dessas pessoas que vieram desses lugares e estão criando aqui agora.