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Nove rappers estrangeiras que mostram a força do Hip Hop para além do eixo Estados Unidos-Inglaterra

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Fotos: Victoria Gee

Desde que MC Lyte, Queen Latifah e Salt-N-Pepa abriram as portas para as mulheres no Hip Hop há quase 30 anos, a presença de rappers femininas cresce neste circuito que ainda é domínio dos homens. Na década que chega ao fim neste ano, nomes como Cardi B e Nicki Minaj fizeram a festa nas paradas dos Estados Unidos e, para além do mainstream; Noname e Rapsody mostram que as canetas estão sempre afiadas. 

Na Inglaterra, as mulheres seguem representadas no Rap e no Grime seja pela veterana Ms. Dynamite ou pelo fenômeno recente Little Simz. E, no Brasil, Karol Conka, Drik Barbosa e Tássia Reis trilham o caminho pavimentado por Dina Di e Negra Li. 

Distante desse eixo, o Rap é forma de expressão e arte de muitas outras mulheres talentosas, que exploram influências regionais e imergem em tendências atuais e tradicionais do gênero mais popular do mundo. Da América do Sul à Europa, passando pela Ásia e a América Central, selecionamos nove – entre tantas – que continuam escrevendo a história das mulheres no Hip Hop por aí. 

Ana Tijoux (França-Chile)

Filha de pais chilenos radicados na França durante a ditadura de Pinochet, Ana Tijoux despontou em 2003, com “Lo Que Tu Me Das”, single em parceria com Julieta Venegas. Na faixa, ela, que cresceu ouvindo Hip Hop, ainda não revela todo o talento como rimadora, mas a partir de 2006, ao engatar a carreira solo, as referências ao Pop Latino vão perdendo espaço para sua grande virtude. Em 1977 (2010), álbum já lançado por uma grande gravadora, ela se estabelece como uma MC versátil e afiada, com letras abordando a injustiça social que percorre a América Latina. Um Boom Bap feroz e com letra autobiográfica, a canção que dá nome ao disco foi incluída na trilha sonora de Breaking Bad e alavancou ainda mais a visibilidade da francesa – que voltara a morar no Chile ainda na adolescência – em sua terra natal. Até o momento, o ponto mais alto de sua discografia é sem dúvida Vengo (2014), uma viagem orgânica (literalmente, já que não há beats digitais) com temperos de Cumbia, folclore andino, Soul, Jazz, Dub e seja lá mais o que pintar para Tijoux desferir suas rimas. O disco foi indicado ao Grammy, chegou ao 15º lugar das paradas latinas da Billboard e ganhou calorosos elogios da MTV e da NPR.

Gabylonia (Venezuela)

Desde a infância em Caracas nos anos 1990, Maria Gabriela Vivas Sojo, a Gabylonia, já era influenciada pelo irmão mais velho a ouvir Rap. Na adolescência, pingando entre um grupo e outro pela cena venezuelana, ela descobriu sua vocação como rimadora solitária de maneira inevitável: Gabylonia mostrou um imenso talento em batalhas de freestyle na capital e, posteriormente, brilhou na Batallas de Gallos, promovida pela Red Bull. A performance nas batalhas foi traduzida em estúdio pela primeira vez em 2009, com o lançamento de Hip Hop Inteligente En Frasco Pequeño, cujas produções bebem do Rap old school que explodiu em Nova York durante os anos 1990. As letras de canções como “Madre” e “Sou Mujer” já apontavam para a tônica que percorreria a lírica de Gabylonia dali em diante: relatos cotidianos, como mulher e como jovem, que se debruçam sobre a vida social e política na América do Sul. Seu principal hit, “Abuso de Poder”, foi lançado em 2012 e é uma crítica mordaz à violência policial. Quatro anos depois, a faixa ainda foi incluída no repertório do álbum Lavoe (2016), que traz mais subversão raivosa em “Tirano” e ainda arranja espaço para a introspecção em “I Love RAP”.

Sabrina Setlur (Alemanha)

Nascida em Frankfurt, Sabrina Setlur é uma veterana da cena de Rap alemã. Tudo começou em 1993, quando ela cantou uma versão acappella de “Nuthin’ But A G Thang”, clássico de Dr. Dre para Thomas Hofmann, integrante do coletivo Rödelheim Hartreim Projekt e então dono do selo 3p. Entre uma participação e outra em faixas do grupo, Setlur fez sua estreia solo dois anos depois com S Ist Soweit (1995), que rendeu o hit “Ja Klar”, parceria com o RHP. A faixa, embalada pelo sucesso do Gangsta Rap americano, chegou ao 11º lugar das paradas alemãs. E, considerando o clima da época no Hip Hop mundial, a produção foi certeira “Ja Klar” traz outro(s) picote(s) de “Be Alright”, de Zapp, mesma canção sampleada em “Keep Ya Head Up”, hino de Tupac lançado dois anos antes. Na sequência, ela alçou voos ainda mais altos com Die Neue S-Klasse (1997), com o carro-chefe “Du Liebst Mich Nicht” chegando ao topo do ranking de singles da Alemannha. O sucesso colocou o projeto seguinte, Aus der Sicht und mit den Worten von… (1999), no 3º lugar da parada de discos alemã. O status de estrela ainda foi incrementado por um breve romance com o tenista Boris Becker e, a partir daí, os tabloides passaram a visar Sabrine, que foi associada a rumores relacionados à anorexia. Com a lente mais presente dos paparazzi, veio a reclusão. O disco seguinte, Sabs, só sairia em 2003, com o single “Ich Bin So” passando batido pelas rádios e, quatro anos depois, veio seu último trabalho até o momento, Rot (2007).

Nathy Peluso (Argentina)

Radicada em Madrid desde os 9 anos, a argentina Nathy Peluso é um nome feminino de destaque no Rap latino atual, com performances cheias de dramaticidade – não por acaso, já que ela é formada em Teatro e Pedagogia das Artes, pela Universidade Rey Juan Carlos. O período na capital espanhola, aliás, foi decisivo para Peluso, que desenvolveu a voz cantando versões de Etta James, Nina Simone e Frank Sinatra pela agitada noite da cidade. Em 2017, “Esmeralda”, um Boom Bap minimalista que também dá nome a seu EP de estreia, a colocou no mapa, mas não demorou muito tempo para ela expandir suas influências vindas do Rap. “La Sandugera”, um de seus principais hits, chegou no início do ano seguinte e traz aquela combinação azeitada entre o Hip Hop tradicional e toques latinos como se ouve no Cypress Hill. Com “Corashe”, ela fez a cabeça dos fãs de Trap e, na sequência, abraçou o Pop no igualmente bem-sucedido single “Natikillah”. Mesmo flertando com sons mais modernos, Peluso mantém uma raiz latina marcante em tudo o que lança e já disse, em entrevista à Vanity Fair, que se sente mais próxima de Gloria Estefan e Luis Miguel do que de ícones do Hip Hop. 

Priestess (Itália)

Na Itália, a discrepância entre o número de mulheres e homens rimando aparentemente é tanta que Priestess é apontada pela imprensa local como uma espécie de pioneira do Hip Hop no país, mesmo tendo aparecido “apenas” em 2015. Pelo menos, ao falarmos de MCs com grande impacto comercial, esse é o caso. Após aparecer no disco Doppelganger (2015), do conterrâneo e popular MadMan, Alessandra Prete virou a maquinista do bonde do Trap italiano, amparada por melodias pegajosas e produções que bebem da fonte de Migos e outros hitmakers de Atlanta. Seus dois primeiros singles, “Amica Pusher” e “Maria Antonietta”, ambos lançados em 2017, conquistaram sucesso inédito até então para uma rapper na Itália – o segundo, inclusive, chegou a ser interpretado por uma caloura na edição italiana do The Voice. Em outubro do ano passado, ela abriu o show de Pusha T, em Milão, e pouco tempo depois retornou com o single “Brigitte”.

Mestiza (Venezuela)

Uma das mais populares rappers da Venezuela atualmente, Mestiza (Yoryanis Chirinos), como a conterrânea Gabylonia, é mais uma cria das batalhas de freestyle de Caracas. Em 2008, com apenas 14 anos de idade, ela entrou em estúdio com o grupo La Colonia e participou das gravações de uma faixa intitulada “No Puedo”, seu primeiro registro oficial. Após participar de “Juego de Damas”, colaboração que reuniu mais 5 MCs mulheres venezuelanas, Mestiza fez barulho em 2014 ao lado de Neblinna, na dobradinha “Respetense”. O Boom Bap peso pesado daqueles 100% Golden Era marcou a fase “mais underground” de Mestiza que, após do burburinho, passou a adicionar cada vez mais elementos do Dance Hall e do Trap em suas produções. Ainda que canções como “Alerta” e “Ajuste de Cuentas” resguardem a atmosfera do Hip Hop mais tradicional – inclusive no flow agressivo –, atualmente Mestiza flerta com sonoridades mais palpáveis ao mercado e é bem-sucedida nisso: são mais de 1 milhão de curtidas na página do Facebook e êxitos “nickiminajianos” como “Dios Mío”, single lançado no início deste ano. 

Danay Suárez (Cuba)

Misturando o Rap ao R&B moderno de nomes como Lauryn Hill e Erykah Badu, Danay Suárez deu seus primeiros passos pela movimentada cena musical cubana ao conhecer o músico X-Alfonso, famoso por suas fusões entre Rock e Hip Hop. A partir do encontro, ela conheceu Gilles Peterson, célebre radialista francês, que a incluiu na compilação Havana Cultura, ao lado de outras revelações cubanas na época. Em 2011, lançou seu álbum de estreia, Polvo de La Humedad, cujo principal single, “Yo Aprendi”, um Boom Bap baseado em uma econômica linha de piano, alavancou a carreira de Suárez (são mais de 10 milhões de visualizações no clipe no YouTube) e a tornou uma das mais prestigiadas rappers de Cuba. Em meio a apresentações por Europa e Estados Unidos (incluindo uma participação no show de Ben Folds, no Kennedy Center, em Washington), a cantora gravou o seu trabalho mais prestigiado até aqui: Palabras Manuales (2017), que traz participações de nomes como Stephen Marley, Roberto Fonseca e Idan Rachel e foi indicado ao Grammy Latino de Álbum do Ano. O trabalho ainda rendeu a disputada Gaviota de Plata, do Festival Viña Del Mar, no Chile, em 2017. Além de “Integridad” – parceria com o filho do Rei do Reggae, no qual ela se aventura pelo Raggamuffin –, o disco tem como destaque a faixa-título, uma track R&B – das mais baduístas – com a doce voz de Suárez cantando/declamando sobre um amor que chegou ao fim.

Haru Nemuri (Japão)

Haru Nemuri não é exatamente uma MC, mas o talento para, através de spoken word, navegar por Rock, Noise, Dream Pop e Shoegaze fez com que ela fosse chamada de “poetry rapper” pela imprensa musical japonesa. A jovem de 23 anos mostrou grande versatilidade e competência logo no trabalho de estreia, Haru To Shura (2018), no qual explora diferentes influências com naturalidade, algo que, de fato, torna sua música de difícil rotulação. Como demonstra em “Yumewomiu”, um dos singles do projeto. No ano passado, ela aumentou seu número de ouvintes ao redor do mundo, depois que Anthony Fantano, do canal The Needle Drop, deu nota 8 ao seu disco e a Stereogum considerou a estreia de Haru Nemuri um dos 40 melhores álbuns lançados em 2018. Com a boa repercussão na mídia especializada internacional, a cantora ganhou prestígio na ala underground japonesa, ao passo que também despontou como voz atual significativa do J-pop – ainda que seja mais que isso – ao redor do mundo.

Rebeca Lane (Guatemala)

Rebeca Eunice Vargas nasceu em meio à Guerra Civil da Guatemala nos anos 1980 e recebeu esse nome em homenagem à tia, que desapareceu durante os conflitos entre o governo guatemalteco e as guerrilhas. No fim da década de 1990, a tensão estava amenizada pelo fim da guerra e, desde essa época, Rebeca Lane era ativista de movimentos sociais, principalmente defendendo causas de vítimas do período do governo militar, pautas feministas e antineoliberalismo. A expressão artística apareceu primeiro em performances no teatro e a partir de 2013 no Rap, com o lançamento do EP Canto e turnês pelo México e pela América Central. Mas ela ganhou destaque na terra natal com o projeto seguinte, o ótimo Poesia Venenosa, capitaneado pela flutuante faixa-título. A resposta ao burburinho veio à altura com o disco Alma Mestiza (2016), no qual a MC se aprofunda em graves e filtros típicos do Trap e reaproveita raízes regionais, como na própria canção que dá nome ao trabalho. No fim de 2018, a fórmula deu caldo novamente em ela seu sexto registro de estúdio, Obsidiana, que reuniu instrumentistas de Chile, Peru, Equador, Argentina e também bebe de variadas fontes musicais da América Latina, mas sem abrir mão de propostas atualmente universais no Hip Hop.

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