Revisitando Meus Clássicos: Chico César – Aos Vivos (1995)

Chico César misturou as origens de Catolé do Rocha à efervescência do Pop paulistano, e o disco de estreia (ao vivo) o alçou à fama nacional; ele destrincha o repertório, relembra as histórias e fala sobre “buscar a modernidade onde, aparentemente, ela não está, mas onde sempre esteve”

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Fotos: Mara Rubia

Revisitando Meus Clássicos é um quadro no qual os próprios músicos destrincham grandes álbuns e pérolas escondidas de sua discografia.

 

Prestes a completar 30 anos de idade, Chico César queria começar a registrar suas dezenas de músicas no início da década de 1990. O paraibano tinha umas ideias diferentes para misturar suas origens de Catolé do Rocha à efervescência Pop adquirida na capital paulista, onde morava havia quase uma década. Só restava um problema: dinheiro. Sem auxílio de uma grande gravadora, Chico não tinha os recursos para cobrir a gravação de um álbum bem produzido à época. Veio, então, a ousada ideia de estrear com um disco ao vivo.

Aos Vivos foi gravado em um pequeno teatro na Grande São Paulo em 1994 e lançado no ano seguinte. O trabalho, voz e violão, alçou Chico à fama nacional e emplacou alguns de seus principais hits até hoje.

Ao Monkeybuzz, o músico conta a história por trás das músicas e ajuda a decifrar seu repertório:

 

Aos Vivos é seu primeiro disco, gravado ao vivo, como indica o nome. Por que você escolheu fazer a estreia no palco e não no estúdio?

Eu fiz um disco ao vivo – gravei durante a Copa [do Mundo] de 94, um pouco antes –, porque não tinha dinheiro para fazer um disco de estúdio. Estúdio naquela época era muito caro, os estúdios caseiros estavam ainda começando, era algo bem insipiente. Eu tava fazendo um disco que seria produzido por André Abujamra, as minhas músicas com loops, gravados em cartucho. Quando procurei o Egídio Conde [dono do antigo estúdio Audiomobile] para pedir um estúdio que gravava coisas ao vivo, ele disse: “Cara, eu nem tenho espaço físico para isso. Você pode vir aqui em casa e gravar, mas eu acho que você devia era fazer um disco ao vivo”. Ele que deu a ideia, né? Eu: “Mas, bicho, ao vivo?”. Fiquei até pensando: “Pô, o cara não tá querendo ceder o espaço, o equipamento. Tá com migué, né?”. [risos] Eu nem tinha dinheiro para o equipamento e tal, tinha um restinho das minhas verbas trabalhistas na Editora Abril [como revisor de texto] e dava basicamente para pagar os contrarregras. “Não, depois a gente acerta, porque eu acredito no seu trabalho, acredito que vai dar certo.” Eu saí da casa dele com essa conversa. Aí, criou-se uma questão para mim. Eu tava querendo fazer um disco de estúdio, com uma estrutura de banda, [com] baterias programadas, loops, baixos de verdade. “Como é que eu vou vestir essas músicas?” Aí, na verdade, eu não tinha que vestir as músicas, eu tinha que despir as músicas. Era pensar como aquelas músicas funcionariam voz e violão, como eu ia ter o ritmo percutido, os contrapontos, as linhas de baixos e resolver ao vivo.

A gravação no palco foi, basicamente, só você e o violão, com participações especiais?

Só eu e o violão e convidados. Eu liguei pro Lenine [participa em “Nato” e “Dança”], ele topou vir do Rio de Janeiro por conta própria no ônibus noturno, ficou hospedado no apartamento que eu dividia com o Zeca Baleiro, dormiu no sofá da sala, que nem cabia. Fui atrás do [guitarrista] Lanny Gordin [em “Alma Não Tem Cor” e “A Prosa Impúrpura do Caicó”]. E assim foi. Depois ficamos eu e Egídio editando, mixando, durante a Copa do Mundo.

Quinze músicas é um disco robusto. Você já colocou tudo que tinha composto? Como foi essa escolha?

Cara, eu tinha, sei lá, talvez seis vezes mais, oito vezes mais. Eu gravei umas 20 músicas nesses três shows. Porque eu vinha compondo desde os 13 anos de idade. Tinha 30 anos, né, sou de 64, tinha muita música. Então eu acabei escolhendo aquelas que, no meu entender, resultavam melhor na voz e violão e que também representavam algo que eu intuía que eram os dois lados fortes em mim.

Quais?

Um, a coisa do ritmo e das canções guerreiras, tipo “Mama África”, que é uma espécie de alegria guerreira que vem na minha música. É uma música de combate, tem ritmo, né? E tem alegria, tem vivacidade, um gosto pela vida. Não são músicas desgostosas. E o outro lado forte era as minhas canções de amor. Não é à toa que as canções que se destacam nesse disco, a princípio, são “Mama África” e “À Primeira Vista”, canções que até hoje fazem parte do meu repertório e da minha vida. Então, assim, é algo que está no meu DNA, que também vem de um ambiente alternativo, experimental, do underground paraibano, que depois se encontra com a Vanguarda Paulista aqui. Eu poderia ter enveredado para ser um cara tipo Cidade Negra, cantando só reggaes, ou ser um cara tipo Djavan, cantando mais músicas de amor, sei lá. Mas eu não podia abrir mão de um lado para ficar só com o outro

Você abre o disco com “Beradêro”, um canto sertanejo, a capela. Ele é todo de composição sua ou é uma mistura entre cantigas populares nordestinas, de Catolé do Rocha?

“Beradêro” vem de beira, beirada. É uma canção de autoria minha, um aboio – aboio é um estilo que são aqueles cantos que os vaqueiros usam para tanger a boiada. E eu ouvi muito esse tipo de canto lá em Catolé do Rocha. Inclusive, meu pai gostava de cantar, mesmo nunca tenha sido vaqueiro. Eu achei que tinha a ver abrir o show, abrir o disco, abrir a minha carreira, a porta pro público, assim. Porque, de certa forma, o Aos Vivos se inspira também num disco que eu gosto muito, o Transa [1972], de Caetano Veloso. Apesar de lá não ter nenhum aboio à capela, também tem algumas coisas de aboio. Tanto o Transa quanto o Araçá Azul [também Caetano, 1973], que é um disco superexperimental, né? Eu queria trazer esse Nordeste profundo, esse Brasil profundo, não como elemento de folclore, mas como elemento de invenção. A letra é bem intrincada, né? Tem a ver com o jeito que eu escrevo mesmo, com figuras de linguagem muito elípticas.

“Mama África” acabou virando o grande sucesso do disco. Uma música guerreira, como você falou. Ela tem muitos contextos num só: fala de cor, desigualdade social, uma cutucada no capitalismo. O quanto tem de autobiográfico ou pode considerar uma história do povo brasileiro?

Olha, ela é autobiográfica de certa forma porque eu sou filho da Mãe África, sou filho da diáspora africana. Eu sou um desses que se olodunzam, que, fora da África, são África. Mas a canção eu fiz para homenagear as mulheres, principalmente as mulheres trabalhadoras que têm dupla ou tripla jornada: trabalham em casa cuidando de marido e filho e trabalham no comércio ou na casa de família como doméstica. Eu fiz essa música andando do bairro de Santo Amaro [zona sul de São Paulo], onde eu morava, pro Aeroporto de Congonhas. Eu ia buscar minha irmã, que estava chegando da Paraíba. Era muito cedo pra eu ir de táxi ou ônibus, fui andando.  E observando as mulheres indo trabalhar, indo pro Largo XIII, ou voltando, tinha umas que trabalham à noite. “Mama África” nasceu dali. Nasceu toda, refrão, ali naquela caminhada.

Isso dialoga com o clipe? Você andando e o povo se juntando ao redor. Mas o cenário não é São Paulo, é Catolé, né?

É Catolé do Rocha. Na verdade, o clipe é de Anna Muylaert, que fez, depois, o Que Horas Ela Volta? [2012]. Ela falou: “Chico, acho que o clipe deve mostrar o encontro do que você é com o lugar de onde você vem. Você apresentando um pro outro. O seu lugar para a sua banda e apresentando seu novo trabalho, sua nova roupagem para o seu lugar, sua família”. A gente pensou muito como seria isso, se ia ser um jogo de futebol. “Não, futebol falso, filmado, fica muito ruim, porque o povo não joga de verdade. Acaba logo o assunto, fica muito ruim.” Aí pensamos, pensamos, acabamos nesse lugar do retorno, do filho que, entre aspas, conquistou um novo reino, e apresenta esse novo reino para seu pai e sua família, pro seu clã. Por isso que tem esse encontro e mistura tudo. Era para ser com a minha família, a cidade soube que eu ia voltar pra fazer esse clipe, aí foi em peso e foi aquele alvoroço. Fizemos, talvez, cinco takes e escolhemos um. Mas não podia ter emenda, tinha que ser direto mesmo. Escolhemos aquele que, para nós, fosse o mais rico.

Essa questão da Mãe África, a cultura africana, muito presente na sua obra, está em “Tambores”. “Pois o que bate agora meus senhores; São os tambores; Mais forte que o açoite dos feitores”.  São conquistas sobre um passado escravocrata. O que você vê essa questão hoje e o que acha que ainda estamos atrasados?

Ah, falta conquistar tudo, né? Acho que têm duas questões básicas a serem resolvidas no Brasil: a reforma agrária, que nunca foi feita, e a emancipação dos afrodescendentes a um patamar de igualdade e cidadania. As escolas são piores, os bairros, os salários, a ação da polícia. A polícia sempre age como se fosse capitão do mato quando vê um preto na rua. Apesar de sermos um país de mestiços, na verdade somos um país de maioria negra e as riquezas estão nas mãos de uma minoria branca, né? Uma minoria que é minoria inclusive em relação aos brancos. Então é uma questão que eu sempre trago para o meu trabalho.

Gravar “Alma Não Tem Cor”, do Abujamra, tem essa provocação? Ou é um deboche?

Pra mim, é como se fosse uma versão do João Bosco pra uma canção que já existisse. Cheia de violões e mangangas estilísticas, brincadeiras, voz de velho, voz de criança. Porque isso tudo tá em nós. E, na verdade, essa canção é uma canção feita por um branco tentando reivindicar para ele o lugar de uma pessoa que gosta de uma cultura negra e pratica a cultura negra – que é o Abu. Ele é ogan, é de religião de matriz africana. Eu nem sou religioso nem nada. Mas ele sentia vontade, necessidade de falar sobre isso. E eu quis trazer aquilo para o lugar de uma pessoa negra, o que eu sou. E como uma grande canção que ela é, acho uma canção maravilhosa. É uma canção que hoje, inclusive, as pessoas têm uma certa resistência a ela, os setores mais radicalizados do movimento negro. “Como assim? Alma tem cor, sim.” Mas é como em “Mulher, Eu sei”: “Eu sei como pisar no coração de uma mulher; Já fui mulher, eu sei”. Pra mim é uma canção que antecipa questões de transicionamento. As pessoas olhavam para mim: “Como você já foi mulher?”. Gente, é uma música, não é uma coisa autobiográfica.

Você já teve problema com isso? O que você quer transmitir com ela?

Já tive. Na época do lançamento do Aos Vivos, uma mulher ligou com muita raiva e disse: “Esse cara, além de imitar o Caetano Veloso, ainda quer agredir as mulheres com esse negócio de pisar no coração da mulher”. Aí eu tive de explicar: “Minha senhora, eu estou dizendo que eu já fui mulher. E eu não estou dizendo que é para pisar no coração de uma mulher, estou dizendo que eu sei como pisar. Não estou dizendo que eu vou, nem que é bacana, só estou dizendo que eu sei”. É um pouco a questão do “Alma Não Tem Cor”. As pessoas falam: “Como assim? Alma tem cor, sim. Vida tem cor”. Eu compreendo, tenho empatia, mas eu gosto da canção e eu acho que há um lugar em que as pessoas todas são realmente iguais – menos aquelas que não querem ser iguais às outras. Aí, realmente não tem muito o que fazer com elas.

“Na verdade, eu não tinha que vestir as músicas, eu tinha que despir as músicas. Era pensar como aquelas músicas funcionariam voz e violão, como eu ia ter o ritmo percutido, os contrapontos, as linhas de baixos e resolver ao vivo”

Você gravou também “Dúvida Cruel”, parceria com o Itamar Assumpção. Você tem, como ele, essa coisa de jogo de palavras nas composições, uma brincadeira com as possibilidades de letrar uma música ou musicar uma poesia. Ele foi uma influência para você? De onde vem isso?

Não. Na verdade, a minha escritura acho que ela é influenciada pelo Jaguaribe Carne, um grupo lá de João Pessoa formado pelos irmãos Paulo Ró e Pedro Osmar, e pela literatura marginal – [Paulo] Leminski, Cacaso, anteriormente Torquato Neto. Acho que o que ajuda a formar a Vanguarda Paulista também é algo que, de certa forma, ajuda a me formar, só que de um outro lugar. Eu frequentando ali a casa da Tata Fernandes, uma das Orquídeas [do Brasil], sempre encontrava o Itamar. Depois de muito tempo já que a gente se conhecia, ele chegou lá, botou a mão no bolso: “Ó, trouxe pra você”. Fiquei com aquela letra ali uns dias. No nosso encontro seguinte, eu mostrei pra ele. De novo, quer dizer, uma canção que tem uma influência de João Bosco, um violão brasileiro alegre, cheio de percussão. Uma melodia com um quê de música nordestina também. Acho que bem é como um cara mais jovem, chegado da Paraíba, do Nordeste, leria a Vanguarda Paulista sem tentar imitá-la. Para criar um diálogo mesmo.

“À Primeira Vista”, que acabamos pulando, faz parte do grupo de canções mais líricas. Qual a inspiração? Porque ela fala de amor, mas fala de outros estímulos também.

Porque o amor, ele acontece várias vezes. Não apenas na vida, como no dia a dia. O amor pelas pequenas coisas, os encantamentos, os alumbramentos, né? A canção mesmo nasceu naquele momento que eu tava produzindo o disco com o André Abujamra, ele tava começando a namorar a Anna Muylaert. Ele marcava comigo na casa dele, onde morava com a mãe, em Higienópolis, e muitas vezes não estava. Eu ia e ficava lá, horas, conversando com a mãe, com o irmão, vendo jogo de futebol… Tinha uma hora que ele não voltava mais, eu ia embora. Aí eu saí de Higienópolis, fui pegar o ônibus. Eu peguei minha agenda Tilibra de capa marrom, abri e comecei a escrever. O primeiro verso era “Quando não tinha nada; Eu quis”. Depois, tinha vários versos nada a ver. “Quando bebi demais; Vomitei; Quando Jânio [Quadros] morreu; Eu gostei; Quando fiz 69; Gozei; Quando [Jimi] Hendrix tocou; Pirei”… Só loucura. Era minha alma, vamos dizer, urbana, agressiva, ácida. E o último verso era “Quando vi você; Me apaixonei”. Ou seja, era uma ideia, a princípio, de um amor underground, de amores noturnos, que envolvem alfinetes, porres homéricos, vômitos, sei lá o quê. Aí, quando cheguei em casa, resolvi dar uma olhada. Li aquilo, falei: “Gente, quanta besteira. Que absurdo”. [risos] Risquei tudo e abri uma página em branco e escrevi “Quando não tinha nada; Eu quis” e, lá embaixo, “Quando vi você; Me apaixonei”. Fui preenchendo. Chega de amores malucos, né? Essa não quer ser uma canção maluca.

Era pra ser mais bonita?

A canção quer ser outra coisa. É importante você prestar atenção no que ela quer ser também. Eu fui fazendo e ficou muito bonitinha assim, né? No dia seguinte, já apresentei no ensaio que eu tinha pro pessoal.

“Eu queria trazer esse Nordeste profundo, esse Brasil profundo, não como elemento de folclore, mas como elemento de invenção” (sobre “Beradêro”)

“A Prosa Impúrpura Do Caicó” tem essa mistura do underground com o sertão. Ela fala da chegada da globalização no interior nordestino?

Quando fiz essa música, eu não conhecia Caicó, nunca tinha ido.

Caicó fica pertinho de Catolé, né? Rio Grande do Norte quase na divisa com a Paraíba.

Ali pertinho, é. Eu fiz essa música na praia de Ibiraquera, perto de Garopaba [em Santa Catarina]. Eu tinha ido passar uns dias lá com uma turma. Tava naquela querendo namorar com a Tata Fernandes. Ela só queria fazer música comigo, não queria namorar com ninguém. Ao mesmo tempo, a gente dormia junto, mas não transava, não se separava, né? Aí dormimos e eu acordei cedo. Mais uma noite daquelas que nada acontece e tal. “Vou dar um rolê.” Umas 5h da manhã, 5h30. Andei pela praia e, caminhando, um pouco naquela tristeza daquele amor que não acontecia, vem esse negócio de “Tudo rejeita e quer”. Aí, eu escrevi a letra na areia da praia, a letra todinha – “Ah, Caicó arcaico…” – e continuei andando. Andei mais, sei lá, alguns quilômetros pra frente, depois voltei. Quando voltei, a letra continuava lá. A água não tinha levado na areia. Fiquei olhando pra letra, comecei a cantarolar. Voltei pra casa cantarolando baixinho. Ela é uma canção de amor, acho que trata do amor de uma pessoa em deslocamento. De uma pessoa que tá numa situação que tá num lugar novo, lugar que ela não compreende muito bem. Eu tava ali apaixonado por uma moça de São Paulo, uma moça da metrópole, que usava óculos de gatinho, óculos transados. Eu acho que a canção trata disso.

E por que esse título com referência ao Woody Allen [A Rosa Púrpura do Cairo, de 1985]?

Porque eu acho que tem essa coisa do cinema, essa vontade de estar num lugar. O filme é isso, né? Uma moça que gostaria de estar com um cara do filme. E também traz uma memória de uma canção, que eu não sei por quem ela foi recolhida – acho que o [Heitor] Villa-Lobos tratou essa canção. “Ó, mana, deixa eu ir; Ó, mana, eu vou só; Ó, mana, deixa eu ir para o sertão do Caicó” [“Caicó (Cantiga)”]… De algum modo, essa minha música foi buscar o Caicó por causa da Rádio Rural de Caicó, que eu ouvia quando criança lá no sertão da Paraíba. Era uma fase [minha] com muitas referências de nomes, de pessoas, de lugares.

A música “Saharienne” também é isso? Quem foi Saharienne?

É isso. É de um filme que chama O Céu que Nos Protege [Bernardo Bertolucci, 1990]. Durante esse filme, passa um ônibus que tá escrito “Transsaharienne”, que é, vamos dizer, o Cometa de lá, o Viação Itapemirim do Saara. Nessa época, eu tava pensando muito nas semelhanças do sertão – o meu sertão – com o deserto, esse deserto com um certo vazio, uma certa aridez da alma, das pessoas, da minha própria. É um sertão que há na gente, que não é só aridez, é lembrança, é amor. Eu nunca penso que o sentimento amoroso de uma pessoa para outra pessoa ele é descontextualizado. Enquanto você ama alguém, estão acontecendo muitas coisas. Pessoas estão nascendo, pessoas estão sendo metralhadas, o primeiro-ministro da Itália está fazendo pronunciamento. Então essa simultaneidade é algo que me interessa muito como artista. O meu amor por uma pessoa não é algo sozinho e isolado do mundo. Enquanto eu amo, tem várias coisas acontecendo e, às vezes, pra falar do meu amor, eu preciso falar de muitas coisas ao mesmo tempo. Coisas que nem têm a ver diretamente com esse amor. A canção vai abrindo, como se um caleidoscópio tivesse na mente da gente. Acho que a modernidade tem muito a ver com simultaneidade, com muitas coisas acontecendo, inclusive no amor várias coisas acontecem ao mesmo tempo.

Em “Clandestino” você canta: “O riso do menino que nem nasce e chora; Apavora como a xota da órfã anã; Maior que o plenário da ONU; E a lágrima do grão-mestre da Ku Klux Klan”. O que é esse menino, o que ele representa? É uma afronta ao racismo?

Sabe a história de Erodes, que ele manda matar todas as crianças na tentativa de matar Jesus? Como esses grupos de extermínio que matam crianças de rua. “É semente ruim, tem que matar logo.” Então, esse menino que não pode nascer porque é um perigo, ele pode ser o líder da revolução, o cara que vai mudar o mundo, o cara que vai inventar a cura do câncer, sei lá…

Quem ele afronta? Qual o clã desse menino clandestino?

Na verdade, esse clã, eu pergunto, mas na minha cabeça é a humanidade. A humanidade que nos falta. Esse é o clã.

“Eu liguei pro Lenine, ele topou vir do Rio de Janeiro por conta própria no ônibus noturno, ficou hospedado no apartamento que eu dividia com o Zeca Baleiro, dormiu no sofá da sala, que nem cabia. Fui atrás do Lanny Gordin. E assim foi. Depois ficamos eu e Egídio editando, mixando, durante a Copa do Mundo.” (foto: Mara Rubia)

Falando em Ku Klux Klan, como você vê o ressurgimento ou pelo menos o reaparecimento público de grupos de extrema direita, declaradamente nazistas, racistas, fascistas?

Eu vejo com uma certa perplexidade, mas vejo que é algo internacional e cíclico. É claro que é constrangedor você ter um cara como o [Donald] Trump presidente da nação ou uma das nações mais poderosas do mundo ou o [Jair] Bolsonaro presidente do Brasil. Mas, para eles chegarem lá, teve uma campanha, teve divulgação de ideias. Há um arcabouço social que deu origem àquilo. Quando tem pessoas na Avenida Paulista com camisetas com suástica e a polícia protegendo essas pessoas e agredindo as outras que estão fazendo manifestação em defesa do Supremo Tribunal Federal, da democracia, é um momento bastante complexo, que exige muita firmeza de propósitos. Exige muita reflexão e muita ação. Porque ali no começo dos anos 30, na Alemanha, isso germinou o nazifascismo. Agora é o momento de tentar barrar, esclarecer. Porque acho que tem um sentimento de rancor muito grande em setores que viram, mesmo que pouco, os gays saindo do armário, os negros saindo da cozinha, os pobres podendo frequentar escolas. Isso gerou um rancor, um sentimento de condomínio fechado, que uma parte de uma elite tem, herança da escravidão. Como assim a empregada vem trabalhar cheirando ao perfume que a patroa usa para ir jantar num restaurante de luxo? Esse sentimento de exclusividade de acesso a determinado tipo de bem e de direitos gerou muita raiva. O filho do porteiro do prédio cursando ECA [Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo] ou a faculdade de arquitetura? Porque, se você der oportunidade, eles vão conseguir ascender na vida. Quando eles começaram a ascender, isso gerou muita raiva.

Você faz uma leitura própria, voz e violão, de “Paraíba”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Você sente saudade da vida no interior? Pensa em voltar para a Paraíba?

Não, eu não penso em voltar lá. Eu tenho saudade, mas é uma saudade do Nordeste dentro de mim. Inclusive, quando faço uma versão de “Paraíba”, é uma versão jazzística, com harmonização própria, não é saudosista. Ela é, vamos dizer, progressista, como eu acho que Luiz Gonzaga era, muito sofisticado. Tanto quanto Cole Porter, tanto quanto Louis Armstrong. Eu o vejo nesse lugar. Essa talvez seja uma característica minha: ir buscar a modernidade onde, aparentemente, ela não está, mas onde sempre esteve. Eu acho que Luiz Gonzaga é um artista pop, ele criou uma indumentária de couro para ele muito antes de [o estilista] Jean-Paul Gaultier criar para a Madonna. É muito louco pensar. Po, esse cara saiu de Exu, no interior de Pernambuco. Então, assim, muitas vezes as pessoas vão buscar o sentimento do novo, do transgressor, lá fora. Eu, cara, vou buscar muito perto.

Isso é abordado em “Dança” e “Nato”? São duas músicas sobre cultura e música, você cita o nome de outros artistas.  Metalinguagem é um dos seus temas preferidos para compor? A cultura e a música brasileira geram esse tipo de inspiração?

Eu acho que a busca pela transcendência que a arte traz, ela vai buscar onde ela [a arte] estiver, né? Na dança tribal, na obra de arte da bienal de São Paulo, na bienal de Veneza. Eu acredito muito nessa força que a arte tem de transcendência. Por isso que, na canção “Templo”, eu falo que “a minha tribo me perdeu quando entrei no templo da paixão”. Esse templo tanto pode ser o templo [lugar] de você conhecer uma pessoa como você mergulhar com paixão em algo que você acredita mesmo, perdidamente.

Então não é só uma música de amor?

Nada é só de amor. [risos] Ele é tudo que lhe afeta, né? O amor impulsiona muito a gente a começar coisas ou a terminar coisas. Quando você se apaixona, larga sua família, vai morar com uma pessoa. Ou você morava com uma pessoa, a deixa e vai morar com outra. Eu acho que o amor é o grande motor da humanidade.

Aos Vivos é um disco que fala de cultura nordestina, africana, música brasileira, assuntos muito ligados a você. Você diria que a sua obra – ou toda obra – é autobiográfica? Como você vê o peso disso nas suas composições?

Olha, eu acho que toda obra leva a digital de quem a faz, né? E essa digital está ligada ao próprio DNA da pessoa, de onde ela veio, por que escolas passou. Não tem como, né? Os livros que você leu, os filmes que você viu, isso vai te influenciar e marcar o que você vai fazer. Então, obviamente a nossa vida é algo importante [para compor], mas ela não é mais importante do que a vida geral em que a nossa está inserida. Quando eu imagino que a minha vida está inserida na Grande Vida, então é autobiográfico porque tem a ver com a vida do cacique Raony, com a vida de outras pessoas, de outros seres. É sobre isso que eu escrevo. Não necessariamente “eu, que sou filho de…”, “eu, que nasci no sertão da Paraíba…”. Porque, na verdade, esse “eu sou” é como se fosse o trampolim, de onde eu parto, é dali que eu pulo, mas as canções, a obra, são sobre o depois do salto, as cambalhotas que eu tô dando no espaço da vida e como eu vou, de certa forma, relatando não o que acontece dentro de mim, mas o que acontece fora e como o dentro de mim enxerga aquilo.

Vinte Cinco anos depois, no seu peito católaico, o que é descrença e o que é fé?

Olha, é como se eu tivesse uma fé crítica na humanidade. Sou um otimista incorrigível, tenho essa fé crítica de que as coisas melhoram, são cíclicas. Então, a gente tá chegando perto do ponto mais ruim da curva, vamos dizer assim, e depois tudo melhora. Aí vamos viver de novo essa fase de bonança e aproveitar essa fase de bonança para construir coisas boas para todo mundo, para nos prevenirmos para a outra fase, quando vier de novo, mais pra frente. Porque é assim. A gente já sabe que é uma roda. É que agora a roda parece uma montanha-russa indo cada vez mais pra baixo e mais perigosamente. [risos]

Tomara. Eu queria agradecer pelo tempo e a conversa.

Mas eu acredito. Obrigado, querido, um abraço.

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ARTISTA: Chico César