Rico Jorge em busca de harmonia

Produtor mineiro fala sobre o processo de composição, as influências e inspirações de seu recém-lançado segundo EP, “Desgraça Pouca”

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Fotos: Isadora Nunes

O som de Rico Jorge tem a ver com harmonia em dois sentidos. O primeiro, em uma direção mais teórica e rígida, é o de encadear notas que criem novas atmosferas subitamente, pintando uma paisagem que serve de cama para ritmo e melodia deitarem e rolarem – na forma de percussão e synths encorpados. O segundo, mais amplo e lúdico, é o de combinar e convergir diferentes referências, sejam elas vindas da música ou de lugares. O artista mineiro expressa a trilha pelos caminhos nos quais se encontram o Electro da última década e o violão-clássico-descontruído de Sebastião Tapajós, Minais Gerais e São Paulo, os sons do corpo e da tecnologia. As diferentes propostas e vivências convivem em harmonia em Desgraça Pouca, seu segundo EP, que acaba de ser lançado pelo selo Ser e Ver.

Com título inspirado em uma frase presente em “Tua Boca”, de Itamar Assumpção, o trabalho começou a ser produzido no final do ano passado e a ideia inicial era soltá-lo no início de 2020. Mas… “o mundo foi parando e fui dando mais espaço para ideia acontecer, permeando outros projetos e compondo tudo sozinho – os arranjos, instrumentações, produções, mixagens. Até que, depois de alguns meses, uma galera foi aparecendo e me ajudando nos processos gráficos, de distribuição e masterização”, conta Rico, em entrevista ao Monkeybuzz.

Desgraça Pouca sucede Mitos Poréns, EP de estreia do músico, lançado em agosto de 2020, e, mesmo um pouco mais “industrial” comparado ao anterior, o novo projeto também abre espaço para intrusões orgânicas e elementos que vêm de linguagens da música brasileira. Rico, cujo instrumento primário é o violão, vê nessa relação algo que extrapola o espectro referencial/artístico e torna-se questão política e afetiva. “É de resistência à cultura imperial, midiática e plastificada, de trato inclusivo e não-hegemônico. O que me move são os caminhos possíveis para não sermos apagados enquanto latinos e transformadores do nosso próprio meio. É daí que a música brasileira sempre me fez sentido em casa, como conforto, lugar de presença e de transformação”.

Além das instrumentações, ouvimos a(s) voz(es) de Rico Jorge pelas três faixas de Desgraça Pouca, seja como percussão ou em letras, as quais, segundo ele, podem ser o ponto de partida para uma produção. “Durante os dias eu escrevo um tanto de devaneios, observações e pirações picadas no celular ou nos cadernos espalhados pela vida. E aí vão surgindo os temas, os contextos e vou entendendo o que realmente tô precisando falar para depois colocar letra nas melodias. No caso, elas vêm primeiro na hora de compor”, explica. Aqui, ele conta mais sobre o recém-lançado EP e destrincha o repertório.

Há uma diferença evidente entre as atmosferas dos dois EPs. O Mitos Poréns me parece mais solar, efusivo e o novo tem uma pegada mais industrial, underground, distópica, cibernética. É por aí? O que isso tem a ver com o ano de 2020? Como foi o 2020 de Rico Jorge?

Em 2018, no Mitos, eu ainda tava concebendo São Paulo como meu lugar temporário. Minhas raízes de Minas e todo hermetismo falavam mais alto do que eu presenciava mesmo. Talvez fosse mais utópico do que o Desgraça Pouca, que foi concebido e vivenciado inteiramente dentro da cena “industrial”, “cibernética” paulistana e ferve com uma observação mais satírica do que falo por estado social, individualismo, o que é luta e o que é adequação. E foi daí que a força urgiu. A sátira transformada em luta, em alento e mesmo em desespero. Esse tem sido meu 2020.

Nesse EP, o violão aparece com um pouco menos de protagonismo do que no Mitos. Mas ainda assim ele me parece um instrumento fundamental para a sua composição. Qual é a importância do violão na sua produção?

O violão é meu instrumento primário e mais carnal de criação. Por muito tempo, não entendia um lugar para ele dentro do som mais digital que eu tava criando e foi surgindo a necessidade de converter essa forma poética gingada dentro de uma estrutura eletrônica sem que soasse duro, premeditado ou como um sample. Fui adentrando ele na “jam” com as máquinas didaticamente de modo orgânico, hackeando a minha própria configuração mental ao compor nele.

Mesmo com a percussão marcante, seu som é também muito atento à harmonia, especialmente quando entra o vocal. Como funciona isso na hora de compor?

Quando crio faixas com estrutura mais eletrônica, o violão acaba entrando mais de final, mesmo que ele seja meu acessório mais relevante nos estudos de harmonia. Mas, no geral, começo criando um beat com a melodia da voz já entrando sobrepondo e o violão em seguida. Ou quando é mais “canção”, levo para esse lugar da voz e violão, para, em seguida, desestruturar, resamplear ou modificar de alguma forma as frases no arranjo.

FAIXA A FAIXA

“Individualístico”

Ela usa essa junção do jovem individual e holístico para narrar o quão individuais, solitários e comparáveis nos tornamos nesses últimos processos que vivemos. É a chama principal, ela nasce de cantarolar a melodia pela casa narrando o início do problema, com uma estrutura aberta e mutável.

“Motim

A Motim” já vem mostrando o quanto a força e ascensão individual não são suficientes pra qualquer grande transformação. Ela une e revolta com uma estrutura mais para pista, um baixo insaciável e uns efeitinhos rodeando até encontrarem a harmonia principal.

“Tomada Quente

Finaliza o EP e os caminhos. É a mais ardida e com a estrutura mais frenética das três. Tudo vira percussão e a melodia principal nasce de uma.

Quais foram os discos fundamentais para sua formação musical?

Acho sempre muito complicado relembrar tudo o que me construiu. Mas nesse momento do Desgraça Pouca lembro uns discos como o Vol.1 (1972), de Pedro dos Santos e Sebastião Tapajós, que foi essencial para eu começar a desconstruir esse lugar do violão, por exemplo. E também o fator base na criação do EP que foi a cena de Electro e afins acontecendo em 2019 no Sudeste. O resgate no isolamento das canções mineiras, dos sambas obscuros, dos inúmeros sets escutados em rádios sem rotulações adiantes. O ambiente proporcionado de maior percepção corporal e contato com as produções de quem cria próximo. E alguns sons percussivos e bem trabalhados, como da Nyege Nyege.

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ARTISTA: Rico Jorge