O rei do Arado

RT Mallone é de São Benedito (a.k.a. “Arado”), bairro da Zona Leste de Juiz de Fora, em Minas Gerais, mas promete ganhar o país todo

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Fotos: João Victor Medeiros

Da primeira vez que sentei para entrevistar RT Mallone era junho de 2018 e ele havia acabado de lançar a sua primeira mixtape. Intitulada Vendedor de Sonhos (2018), ela faz referência ao período em que o rapper mineiro de 24 anos trabalhou em uma padaria no seu bairro para juntar dinheiro para a gravação do disco. Roho Tahir – abreviado, RT – é cria do São Benedito, também conhecido como “Arado”, bairro da periferia da Zona Leste de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Ao conhecer aquele micro-universo pulsante, é possível compreender a razão pela qual o rapper faz questão de citá-lo constantemente nas músicas. “Vou levar vocês pro baile do Arado agora, tá ligado?”, ele convida em “Sangue de Rei”, uma das músicas mais vibrantes de seu primeiro álbum; assim como frisa: “atravessei bairros em guerra para gravar meu disco, do Arado pro Candinha, mas na volta tinha um corpo”, mostrando a dualidade do universo da favela em que vive ou como o próprio define, o “ponto cego”.

Dias antes da entrevista, RT Mallone esteve em São Paulo para fazer o lançamento do seu disco de estreia, o Roho Tahir (2019). Dias que certamente foram intensos para o mineiro. Sendo a principal aposta do selo Artefato para os próximos anos, o rapper figura na votação de melhores álbuns do ano da Red Bull, aparecendo no Top 10 nas quatro primeiras semanas e com suporte de artistas como Don L, BK’, Rashid e Emicida, que comentaram e indicaram os discos em redes sociais. Cheguei na sua casa às 11h de um dia semana e não pude deixar de notar a tranquilidade em que ele estava me esperando. De chinelo, bermuda, bem solto sentado na varanda que fica de frente para a rua Marcelino de Oliveira, onde costumeiramente ele posta alguns stories. 

O curioso de sentar ali para fazer a entrevista é que foi possível perceber nuances e situações que o rapper pinta nas músicas. Desde o grupo de jovens que passa com a caixa de som JBL estalando e vestidos como se estivessem em Londres até as crianças que conhecem o RT e passam dando “oi” com aquele olhar de quem enxerga quase um super-herói, sem deixar de mencionar uma mãe que briga (provavelmente) com o filho e interrompe o áudio da conversa. Segundo o rapper, o seu disco de estreia “tem a ver com se sentir bem, importante, como da realeza”. Troquei uma ideia com ele para saber como ele passou de vendedor de sonhos para rei do Arado.

Você tem sonhado?

Sim, mas não sei falar com o quê ou fazer conexões. Minha memória é fraca, maconheiro é foda. Tenho que anotar, pelo menos os mais marcantes.

Como foi São Paulo?

Toda vez que caio pra SP é daora porque tem sempre muita coisa acontecendo. É tipo ser do Time B do Real Madrid e lá você tem alguns jogos no Time A. Não que as pessoas de lá que são o Time A, mas digo de dimensão mesmo. Dessa vez, foi além, porque trombei vários ídolos, fiz o meu show. E foi a primeira vez que não fui sozinho, levei meus amigos de Juiz de Fora e isso é muito importante.

Quando as pessoas são da realeza, eles têm esse valor na vida (…) É se sentir importante, mas real, não essa coisa forçada de se sentir um bosta, mas falar “eu sou o cara”. É realmente sentir que a sua vida vale. – RT Mallone

Quando começou a compor?

Nas minhas contas, foi de onze para doze, quando comecei a dançar e tive mais contato com o Rap.

E o que era?

Era aquele bagulho que era Rap, mas sempre tinha R&B, aquela mistura perfeita. Pharrell e Snoop, todas as músicas de R&B sempre tinha um cara rimando, gente que fui ouvir depois de velho. Na época, eu só ouvia os caras e achava daora. Eu não sei falar inglês, hoje entendo uma coisa ou outra, mas, na época, eu não sabia nada. Então, escrevia em cima do flow dos caras o que eu achava que eles tavam falando ou o que eu achava que cabia naquela música, era como se fossem paródias. É doido que depois de mais velho algumas letras batiam (risos). Caralho, faz tempo. Tô com 24.

Durante seu crescimento teve algum artista em quem você foi obcecado?

Eu tive minha época de gostar muito do 50 Cent e chapava demais em todos da G-Unit. Tive minha fase de ser muito fã do Ne-Yo, do Usher, porque eles cantavam e dançavam como eu, tinha essa conexão. Chris Brown foi um cara que eu lembro que eu queria ser. Quando eu tinha treze, e ele surgiu com dezesseis, eu dizia que queria estar igual ele quando fizesse essa idade, mas quando eu fiz dezesseis eu tava igual quando eu tinha treze, eu não cheguei nem perto (risos). Foi maior brisa pra mim: o cara era grande, tinha grana, roupa, dançava e cantava pra caramba com dezesseis anos, eu ficava “não é possível”.

Ele foi tipo o Justin Bieber negro.

Exatamente, ele é o Justin Bieber de Atlanta.

E o Michael Jackson que você cita na música “42”?

Eu era muito novo, quando eu fiquei mais velho e entrei na dança, ela já era outro bagulho. Ele é aquele rei que a gente idolatra, mas eu não tive a brisa de querer ser o MJ. Quando eu era brisado, era coisa de oito, sete anos pra baixo. Eu lembro que meu avô me ensinou a mexer em uma vitrola bem novinho e o único disco que eu ouvia era o Thriller (1982). Tanto que eu não sei quais outros discos que ele tinha, acho que tinha alguns do Roberto Carlos… Mas, quando comecei a dançar, ele já era bem mais velho. Chorei quando morreu? Chorei, se você não chorou você é uma pessoa ruim, mano.

Eu não chorei.

Deus perdoa. Chorou quando Mac Miller morreu?

Chorei.

Tá compensado. Vamos pro céu juntos.

Você disse uma vez no Twitter que o Roho Tahir era o som “Ostentação” dissolvido em sete faixas.

“Ostentação” partiu de um preconceito meu. Quando o funk ostentação começou a estourar, eu como rapper, fui uma das pessoas que ficou contra. Para mim, era inviável ficar mostrando o que não tinha, ia influenciar as pessoas na quebrada a ir cada vez mais para o crime. Até que eu vi uma entrevista, não sei se foi do Guimê… E eles falavam que a galera tava cansada de falar só de sofrimento, eles estavam vivendo o sonho deles. Aí eu vi o quão parecido com eles eu era e o que eles tinham eu também queria, só que quando eles apareceram, eu julguei. “Tô criticando um bagulho que é meu espelho”, pensei – foi quando tive a ideia de fazer a música. Tem todo esse rolé de falar das minhas vivências, de algo que foi importante pra mim e foi roubado – por mais material que seja – o perigo de viver na quebrada mesmo não sendo envolvido… E o Roho Tahir é tudo isso, trata disso de uma forma quente, que queima, um pouco ácida. 

Quando eu escuto, pelo tamanho, pelo começo e término secos das faixas, realmente me parece uma combustão.

É assim, transita de um tema para o outro queimando. É esse bagulho queimando dentro de mim. Outra coisa que me influenciou a escrever “Ostentação” na época foi eu estar juntando dinheiro pra gravar um álbum e ter gastado tudo para dar um rolé com minha namorada na época. Esse dinheiro não paga o que eu vivi, eu vivi uma parada muito maneira fazendo essa troca, mas foi doloroso porque eu sou péssimo em juntar dinheiro e aquele foi um dos poucos momentos que eu tava empenhado em juntar. Então me senti como se tivesse trocado todo esse empenho para ter um momento. Foi uma noite e o dinheiro foi todo embora.

A escolha por sete faixas teve influência do Kanye West?

Também. Esse período de “um por semana” me impactou e abriu meus olhos porque eu era totalmente contra discos curtos. Eu faço muita música, tenho muita coisa pra falar e não conseguia me compactar. A escola que eu venho faz discos longos, que é a escola do Boom Bap. 

Os próprios primeiros álbuns do Kanye são longos

Os do Kendrick, que não são tão longos, não são só sete faixas. Pelo menos o good kid m.A.A.d city (2012) que foi o primeiro que eu ouvi, foi logo o deluxe – para além do fim do álbum ainda tinha mais cinco faixas. Mas eu achei muito louco, o álbum da Teyana e o próprio ye (2018) foram meus favoritos. Nessa mesma brisa, teve um que me inspirou mais, que foi o disco do Katori Walker. Ele é de Pasadena, é um cara rimador, mas ele transita nas vibes, faz bons refrões e ele nem é tão conhecido.

E a galera brinca que em Pasadena não tem Rap, né?

Sim, tem uma entrevista dele no Funk Flex que perguntam: “Quem é de Pasadena?” e ele responde: “Só eu”.

Quais os paralelos entre Chicago e Juiz de Fora que você menciona no álbum?

Quando eu criei esse conceito foi por um fato mais musical. Chicago não é tipo uma cidade que é o polo do Rap nos Estados Unidos, mas sempre surgiu gente foda de lá. Common, Kanye, a galera do drill de Chiraq, Chief Keef. É um lugar muito violento e com muito negro, a parte artística é muito aflorada. É como se fosse escape, uma fuga. Como se pra uma coisa existir, ela precisasse da outra.

Tipo a pressão que transforma carvão em diamante.

Essa metáfora foi muito boa, eu vou usar isso numa rima (risos). Eu sentia isso, é uma cidade que artisticamente falando supera a violência. Tirando esse lance do drill, não tem um estilo de fazer Rap em Chicago: o Common faz de um jeito, Kanye de outro, Saba, Noname, a galera é muito plural. Assim como aqui [em Juiz de Fora] não conseguem prender a gente em rótulos.

E qual o lance da sua foto de criança na capa?

O disco ia chamar “Ponto Cego”. Íamos sobrepor imagens, fazer um lance relacionado a morte, eu morrendo e uma criança vendo.

A rima “não sei se peço paz o dinheiro/ confesso que do meu ponto cego parece o mesmo”, amarra bem esse conceito.

Você não consegue ver os dois lados de cara, é um ou outro e sua mente vai pender para um dos dois. Queríamos fazer essa brincadeira na capa, só que tem esse lance também de “quem é o rei?”, então tivemos a ideia de usar a foto na blusa como se fosse o manto do rei com a imagem da criança mostrando que o rei já estava ali, mas foi assumido agora. Essa capa fala muito sobre a fase que está rolando agora. Eu sempre fui o rei daqui, quando falo isso me refiro a minha vida. Eu sempre me tratava como coitado – auto-estima baixa é foda – mas agora eu me sinto bem, capaz, me consolidando. Eu acho que foi uma soma muito bonita do João com o Hislla, o toque que ele deu com a ilustração. Inclusive é uma das capas mais bonitas da Red Bull, se fosse essa a disputa estaríamos ganhando.

Meu verso favorito inclusive é o terceiro de “Sangue de Rei”. Qual o seu?

Difícil essa. Eu gosto de Ponto Cego, o segundo verso me toca muito porque é sobre meus irmãos, pessoas reais que eu tive que enterrar. Fala desse ódio que às vezes eu sinto, “quis matar esses vermes…” é um bagulho que eu não trato tanto por ser um cara de boa, converso com todo mundo, poucas pessoas me viram nervoso. Mas eu sinto, só não expressava. É visceral pra mim por mais simples que seja.

O que é realeza para você?

Tem a ver com se sentir bem, importante. Não mais que os outros, mas se sentir valioso, saber que sua vida é uma perda muito maior que apenas uma morte. Quando pessoas são da realeza, eles têm esse valor na vida, autocuidado e o cuidado de fora, as pessoas não querem perder eles. Se sentir importante, mas real, não essa coisa forçada de se sentir um bosta, mas falar “sou o cara” e tirar onda com os outros pra se sentir melhor. É realmente sentir que sua vida vale.

Como foi acordar e ver seu nome na lista da Red Bull?

Eu tinha pegado um bico de servente de pedreiro – que não tem nada a ver comigo, mas eu tava sem grana, o dinheiro do streaming tava ainda para cair e eu precisava fazer uma viagem. Fico desmotivado quando tenho que trabalhar com paradas que não são a música e em um desses dias, esquentei minha marmita e quando sentei pra comer  recebi uma mensagem de uma amiga, a Gisela Alves, falando da lista da Red Bull. Não associei que eu estava na lista, pensei em fazer uma campanha pra entrar, mas eu já estava. Só chorei e vi que não tinha motivo pra estar desmotivado agora. Por não ter os números, a gente fica naquela de não ser tão importante quanto os outros. Mas, está chegando nas pessoas, salvando vidas; ouvi de várias pessoas que elas ouviram o álbum e sentiram vontade de viver, o que tem tudo a ver com isso de realeza que falei.

E como tem sido receber o reconhecimento de grandes nomes do cenário?

Tem sido ótimo, muitos deles me ensinaram a fazer Rap. O Rashid nem sabia quem eu era, mas ouviu porque o Emicida gostou e mandou para ele. Muito louco entrar no Instagram e ver um stories do BK’ ouvindo meu álbum. Eu não fui na porta dos caras pedirem para ouvirem meu som, saca? Acho que todos meus ídolos ouviram meu trampo, só faltou o Mano Brown, aí vai ser o “Lacre de Orichalcos”. Os números ainda não vieram, nem festivais, mas as pessoas que estão nesses locais vieram. É ser mais reconhecido do que conhecido. Não temos porque ficar desmotivados agora, se não ficamos antes, perdemos a oportunidade.

Você se sente uma aposta?

Me sinto, mas estou cansado disso. Acho que a gente vai ganhar o país. O Rap que eu faço não é o que mais vende, mas sempre estará vivo porque conversa com pessoas. É entretenimento, mas tem diálogo. Acho que [esse estilo] esteve um pouco em baixa no surgimento de novos nomes e sinto que eu trouxe isso de volta. Sem ser guardinha, falar o que pode e o que não pode, mas fazendo o que eu gosto. É inspirador pessoas como o Negus disseram me olhando no olho que acreditam no que faço. Tudo que eu escrevo é isso aqui, não sei fazer outra parada. Rua Marcelino de Oliveira, Arado.

Já que você cita ele em Roho Tahir, qual seu disco favorito do Jorge Ben?

Negro É Lindo (1971). Porque ele tem sauce de negrão. Ancestralidade, pegação, músicas com nome de mulher… O cara malandro com vários amores, sentimental, “Preciso falar com alguém que precise de alguém pra falar também”… Ele carrega uma doçura muito daora de ouvir. Sinto que ele leva a vida na manha, ele tem os problemas da vida dele, as paixões, mas ele lida de uma forma daora.

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ARTISTA: RT Mallone