RUADOIS e o Garage de Belo Horizonte

WELL, AKILA, Mirral ONE e georgeluqas falam sobre o primeiro volume de “Proibido Estacionar” e as intenções de expandir a versão mineira (e brasileira) do ritmo londrino

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Fotos: Camila Alda

Belo Horizonte é uma cidade curiosa. Nos últimos anos pré-pandemia, acompanhá-la ficou até difícil: sua cena cultural efervesceu e se multiplicou – da consolidação de um Carnaval de rua aos novos coletivos de festas eletrônicas, passando por nomes adentrando o atual Olimpo do Rap nacional. E com tanta coisa acontecendo em diversas frentes – você vê artistas e organizadores, ali, no bar da esquina –, pode parecer fácil fazer seu nome. Antes fosse. Furar a bolha é dificílimo; frequentemente, a cidade gira a roleta e escolhe entre os mesmos cinco ou seis artistas para cada evento. É como se aqui, pra fazer sucesso, você precisasse de uma panelinha (ou uma cena?) pra chamar de sua.

O RUADOIS veio um pouco dessa brincadeira: não é bem uma panelinha, mas um coletivo, formado pelos rappers WELL e Mirral ONE, os produtores gabrieldvarte e georgeluqas (do coletivo qnipe) e a DJ AKILA. Separados por poucos quilômetros, os artistas e produtores são um acaso de pandemia. Eram pessoas sonhando, simultaneamente, com as mesmas coisas, sem nunca, entretanto, terem se esbarrado por aí.

“Me tornei amigo do Mirral na quarentena. A gente joga o mesmo videogame”, conta WELL. Os artistas e colegas de Call of Duty já “tavam de caminhada” há anos quando se conheceram – cada um à sua forma, já buscavam um Rap (ou simplesmente um som) que se destacasse no meio da avalanche de Trap, Grime e Drill. Que fizesse nome em BH, sim, mas também no Brasil todo. O achado veio por uma amiga de WELL: a Camila, também conhecida como DJ AKILA.

AKILA: “Um dia eu tava ouvindo rádio indo pra um rolê, no Uber, e tava tocando um Garage. Aí na época eu namorava um menino que falou: ‘Ah, isso é Garage’. Aí comecei a me aprofundar. E como eu e o WELL, a gente falava muito dessas coisas mais londrinas… Aí eu falei: ‘Uai, vamos fazer isso aí acontecer!”.  

WELL: “No Brasil, essa cultura que tem muita referência da Inglaterra chegou num pacotão só… Tudo era Grime no começo. Drill era Grime, Grime era Grime, às vezes atéTtrap era Grime. O garage, quando ouvi, tinha a sonoridade mais amigável, perto de uma vibe que eu queria transmitir – não só aquela coisa de ficar feroz e pá, gritando.”

Mas como encontrar alguém que dominasse as artimanhas de um bom beat de UK Garage, em Belo Horizonte, no ano de 2021? De WhatsApp em WhatsApp, WELL encontrou um tal de georgeluqas – que realmente se chama George Lucas e, por isso, teve que inventar outra grafia ao registrar seu nome no Spotify. Mais uma descoberta de pandemia. Para George, o caminho na produção musical já vinha rolando: ele e gabrieldvarte são parte de um grupo chamado qnipe, que até então fazia versões “meio indie” de músicas famosas dos anos 2000. Mas para quem teve seu gosto musical formado por artistas como Skepta e Freddie Gibbs, sua vontade mesmo era criar no Hip Hop.

O resultado do convite de WELL foi a primeira produção oficial de George, aliás – uma faixa chamada “fml”, feita em parceria com o cearense BAKKARI. Com versos confiantes sobre o beat de garage, a música chama a atenção pelo refrão que entra fácil demais no ouvido; e, claro, pelo videoclipe inusitado feito no GTA.

WELL, George e Mirral contam que a música não era uma “nova invenção”, mas um pontapé. E algo tinha dado certo: apareceu vídeo do SD9 curtindo a música nos stories, de repente; a galera do Brasil Grime Show também “deu moral”. E até gente que não curtia Rap ouviu, curtiu, compartilhou. Nem por acidente, nem com pretensão demais, os artistas viram um caminho. A faixa, inicialmente só um single do EP Sparring, de WELL, ganhou vida própria. E com a recepção de “fml”, ficou claro que existia um espaço.

AKILA: “Sempre existiu o BR Garage, né?”

WELL: “É, sempre existiu. E é muito pretensioso tipo… porra… BR Garage… é um garagezinho que tamo fazendo né?”

Mirral: “Desde Kelly Key até Moleque Transante…”.

AKILA: “Moleque Transante é O BR garage. Ele tem a malemolência brasileira”.

George: “A gente não tá inventando nada, tamo fazendo do nosso jeito”.

AKILA: “A gente tá revivendo os velhos tempos”.

Foto: Denewsin

É por isso que o garage pega: a fórmula do sucesso está aí, explicadinha. Além da memória boa que todos temos inconscientemente – seja da Kelly Key, seja do Moleque Transante ou até da abertura de Meninas Super Poderosas –, a sonoridade é sedutora e mais suave do que muitas vertentes do Rap revisitadas atualmente. Para uns, pega bem por ser o pai do Grime; para outros, pega bem por ser uma espécie de filho do House. O Garage já vem com alguma ou algumas prováveis ligações afetivas.

Além disso, produtores e artistas ao redor do Brasil já vinham compreendendo um detalhe crucial: como qualquer gênero musical que envolve não ficar parado, o garage é extremamente abrasileirável. Sua levada é dinâmica e em seu caldeirão cabe muito mais do que Rap ou Funk –  e toca nos fones, mas cai bem na balada.

WELL: “E aí a gente foi entrelaçando e viu que tem muita gente que faz [garage], mas tem pouca gente que tá entregando isso. Eu conheci uns mano do Espírito Santo que rimavam em Garage, com som brabo mas não levavam pra frente. Daí eu falei: ‘não, tem que levar pra frente essa cena.’”

AKILA: “A gente achou uma galerona no Brasil que faz, Jovelli, Brunoso, CHEDIAK… foi uma pesquisa muito daora”.

Realmente, não precisa ir longe para encontrar bons casos de UKG no Brasil: de “PRETA GORDA”, de LARINHX, DaMatta e Mangolab, a “TERCEIRO MUNDO”, do conhecido BRIME! de Febem, Fleezus e CESRV. Vasculhando o Hip Hop brasileiro, você logo vê o UK Garage batendo na porta, querendo entrar.

Mas o que transforma algumas coincidências em movimento é o reconhecimento mútuo. Aos poucos, as músicas avulsas, os DJs espalhados pelo Brasil e os novos-velhos-fãs-de-Garage começaram a se reconhecer mais. Os membros do RUADOIS sabiam disso: queriam oficializar esse novo movimento do Garage brasileiro, não como os primeiros – mas como os responsáveis por dar nome às coisas. Um projeto que assumisse de vez o BR Garage, a nossa garagem.

WELL: “Daí teve um estalo: ó galera, vamo apostar nisso, é uma parada que todo mundo gosta e tem um potencial de conseguir alcançar pessoas, propor coisas novas na cena do Rap.”

Fotos: Fernando H. Oliveira

Eis que surge o Proibido Estacionar: o primeiro projeto oficial do coletivo RUADOIS enquanto coletivo, inspirado na conversa que eles mesmos vinham acompanhando. Lançado no fim de outubro, o projeto é uma proposta que abre as portas da garagem para qualquer um entrar – só não pode estacionar, ficar parado.

WELL e Mirral ONE reaproveitam suas músicas originais enquanto George e seu parceiro gabrieldvarte, ficam com a função de engaragear as faixas dos rappers. A DJ AKILA fica com a parte da discotecagem na gravação ao vivo, feita naquele esquema familiar aos moldes do Brasil Grime Show. O projeto (divulgado em um site autoexplicativo, o ukgarage.com.br) leva o nome de volume 1, o primeiro de muitos volumes; o próximo, eles me adiantam, com novas colaborações.

Afinal, a RUADOIS não fica em BH, mas no que eles chamam de Barraverso – o universo de barras (bars). Partindo do Garage, o Barraverso é um universo em expansão, que cabe onde você está. É a consolidação desse som, seja no grupo de WhatsApp, na festa eletrônica ou nas novas aparições do gênero na cidade, no estado, no país.

WELL: “Não vejo muito a cena do Rap BH mais, vejo uma parada nossa. O Garage mesmo, sabe. Independente de onde a pessoa for, se ela quiser colar junto, tá bem-vindo, bem-vinda. A ideia é criar uma comunidade, não precisa nem fazer parte da nossa comunidade, mas é uma comunidade mais geral, saca? Implodir uma cena mesmo”.

E lá vai implodindo.

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