Secos e Molhados: Mais do que Parece

Interesse pelo trio permanece alto ao longo do tempo

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Lembro de uma amiga querida dos tempos de UERJ, no meio dos anos 1990, entusiasmada com o primeiro disco de Secos e Molhados. Ela estava fascinada especialmente com a singela faixa 12, As Andorinhas, pois havia percebido a beleza da poesia da letra, em meio à diminuta duração da canção (exato um minuto) e sua analogia às notas musicais e aos pequenos pássaros, que pousam no fios erguidos sobre a rua, ligados pelos postes. Naquela época, a minha geração de fãs de música estava redescobrindo este e o segundo trabalho do grupo, então relançados num volume da série Dois Momentos, da Warner, com chancela do pesquisador musical e então baterista do grupo Titãs, Charles Gavin.

E qual é o grande barato do grupo? Certamente a mistureba sonora que fez quase instintivamente. De uma forma, digamos, ideológica e musical, Secos e Molhados é cria de João Ricardo, músico português, filho do poeta comunista João Apolinário. Veio adolescente para o Brasil e tornou-se um fã de Rock, especialmente de The Beatles. Depois de dominar o violão e aperfeiçoar sua escrita como letrista, João se viu com vontade de ter uma banda. Passou por grupos sem expressão e formou um trio com percussão e violões, formato que achava mais interessante pois sua admiração maior é pela encruzilhada entre o Folk e o Rock. Após alguns ensaios com Fred e Antônio Carlos, seus primeiros companheiros já sob o nome de Secos e Molhados, João vê que precisa de algumas mudanças para chegar num ponto de ineditismo musical. Tal salto qualitativo vem com as chegadas de Gerson Conrad (violão) e do cantor iniciante Ney de Souza Pereira, que adotaria o sobrenome Matogrosso em homenagem a seu estado natal.

Sendo assim, o que é tão legal nos primeiros álbuns do trio? Ao contrário do que a crítica especializada gosta de pensar, não enxergo os dois discos (lançados em 1973 e 1974, batizados com o nome do grupo) como trabalhos de Rock, no sentido estrito do termo. Tal noção é reducionista e deixa de lado o grande mérito, que é, justamente, o hibridismo. Claro que a inovadora (em termos de Brasil) maquiagem no rosto, os adereços corporais e a performance sensacional de Ney à frente do trio, eram um diferenciais mercadológicos que ajudaram a vender o álbum inicial em números impressionantes. Nada disso seria suficiente se as canções não fossem sensacionais. Há um número impressionante de faixas com potencial pop inusitado, mesclas de folclore luso-brasileiro com abordagem Pop, caso de O Vira, Amor, Patrão Nosso de Cada Dia, Rondó do Capitão, Primavera dos Dentes, além da já citada beleza mais leve que o ar de As Andorinhas, a arrasadora faixa de abertura, Sangue Latino, um libelo anti-ditadura militar num âmbito continental, que tinha ares de canção emancipadora se cantado por um cara como Ney Matogrosso, maquiado e rebolativo, como se a modernidade pedisse passagem diante da caretice. Pra encerrar com um destaque atemporal: Rosa de Hiroxima, com letra de Vinícius de Moraes.

As aparições televisivas do grupo só atearam fogo na mistura. O país nutriu um misto de encanto e medo dos sujeitos, maquiados e dançantes na telinha em programas como Fantástico. O resultado foi um fenômeno Pop nacional, com direito até a venda de máscaras de carnaval em 1974. A ascensão meteórica dos sujeitos também foi responsável por seu precoce fim. Após um convite para tocar no México, já tendo enchido o Ginásio do Maracanãzinho com 30 mil pessoas (com uma quantidade três vezes maior, do lado de fora), o trio separou-se por desentendimento sobre valores monetários e brigas sobre o controle criativo. Já havia um segundo disco gravado, que chegou às lojas algum tempo depois, contendo mais algumas canções daquela lavra sensacional. Tercer Mundo, com letra inspirada na obra do poeta argentino Julio Cortázar e Não: Não Digas Nada, sobre original de Fernando Pessoa. Além destas, a bela Flores Astrais mostrava que ainda havia lenha para queimar.

Os integrantes do grupo separaram-se e Ney Matogrosso foi quem conseguiu o maior destaque, sendo, até hoje, um dos grandes artistas da música brasileira, justamente por ser capaz de equilibrar várias influências em seu repertório, indo do Pop ao Samba sem cerimônia. Gerson Conrad permaneceu num papel discreto, gravando álbuns com a cantora Zezé Motta, enquanto João Ricardo manteve o nome da banda e lançou álbuns apagados em 1978 e 1980. Ao todo, ele tem outros quatro discos, sendo Chato-Boy o mais recente, de 2011.

Se você for se aventurar na obra de Secos e Molhados, jovem, mergulhe profundamente no primeiro álbum e procure entender os mistérios contidos ali e chegue à constatação que, a exemplo de outro ótimo álbum do mesmo período, Clube da Esquina, ele é uma mescla de vários elementos, sendo quase impossível classificá-lo. Porém, ao contrário da obra-prima de Lô Borges e Milton Nascimento, a estreia do trio é arrasadoramente Pop. E isso é seu maior mérito, a capacidade de tradução de vários conceitos em canções que duram pouco e dizem apenas o necessário. Depois de concluir isso, passe para o segundo e lamente pelo fim precoce de Secos e Molhados e vá conhecer os lançamentos posteriores e a carreira de Ney Matogrosso, cheia de discos memoráveis. Boa viagem.

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MARCADORES: Redescobertas

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.