Sejam bem-vindos à Baile Room

Como uma festa de Belo Horizonte ajudou a transformar a cena cultural e o público da cidade por meio do funk

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Fotos: @eufreitas97

“Esse é o line-up dos meus sonhos”, gritou Vhoor no backstage logo atrás do palco em que esteve pouco tempo antes e que, naquele momento, estava nas mãos de Anderson do Paraíso, uma espécie de lenda do funk de Belo Horizonte. “A ideia desse line era trazer todo mundo que é amigo de Soundcloud, as pessoas que estão junto nessa trajetória, mas também trazer o som da cidade, o que a gente escuta saindo na rua, os funk putaria que toca na favela, bota fé?”. Era um sábado no meio de março e estava quente. Belo Horizonte já é uma cidade quente, mas em uma casa lotada por 1.200 pessoas e os grandes nomes do funk estralando nas caixas, esta edição da Baile Room estava especialmente ardente.

A Baile Room é uma festa idealizada e produzida desde 2018 por quatro DJs que, na época, eram um tanto quanto deslocados da cena de música eletrônica mineira. Seis anos atrás, Thais Alvim, mais conhecida como DJ Kingdom, tinha um coletivo que produzia uma festa chamada Art Rolê. Kingdom convidou Vhoor para tocar em uma edição e ele levou VKKramer, que já tocava com D.A.N.V.. “Conversa vai, conversa vem, a gente percebeu que tinha muita coisa em comum porque a gente gostava das mesmas músicas”, conta Vhoor sobre o encontro com Kingdom, que ele considera até hoje responsável por ele ter aprendido a ser DJ. Ela comentou que iria fazer uma edição do Art Rolê em uma casa de show chamada Emme Lounge e convidou Vhoor e VKKramer para fazer a festa com ela. Criaram um grupo para conversar, trocar referências e, naturalmente, D.A.N.V. foi incluído.

Estes quatro DJs tinham uma urgência em comum: apesar de alguma projeção no Soundcloud, eles mal recebiam convites para tocar nas festas da cidade e, quando eram chamados, o funk não era bem recebido nas casas. “Belo Horizonte tem dois polos: as festas de música eletrônica, principalmente techno e house, que são espaços mais brancos e ricos, e as de hip hop e funk, que são festas de pessoas negras”, explica Vhoor. “A gente só se juntou para tocar porque o cenário de música eletrônica era muito preconceituoso, para você ter uma ideia já aconteceu da gente tocar funk em um set e cortarem o som da festa”.

A festa surge então como essa solução: para tocar, ser visto, comentado e assumir uma nova possibilidade sonora na cidade. Mas, o que começou como uma aposta na autonomia gerou um efeito bem maior na vida cultural de Belo Horizonte: com o fôlego da carreira de Vhoor e o sucesso de Baile (2021), um público maior do hip hop começou a frequentar a Baile Room, e, paralelamente, as festas de techno já estabelecidas começaram a convidar os residentes da Baile Room para tocar e, por sua vez, seus DJs também começaram a tocar na Baile Room.

Essa troca de DJs em clima de oferta de paz gerou um público mais misto, mais maleável, com um gosto musical menos engessado e, por isso,  ideal para a proposta da Baile Room hoje.

(Foto: Danilo Silva - @oranduu)

“Belo Horizonte tem dois polos: as festas de música eletrônica, principalmente techno e house, que são espaços mais brancos e ricos, e as de hip hop e funk, que são festas de pessoas negras. A gente só se juntou para tocar porque o cenário de música eletrônica era muito preconceituoso. Para você ter uma ideia, já aconteceu de a gente tocar funk em um set e cortarem o som da festa” – Vhoor

Eram 22h e estava quente como se fosse 12h. Ainda faltava uma hora para o início da festa, mas, como queria falar com Vhoor, peguei um carro até o endereço do evento, que não era qualquer. “CineOdeon? Estou levando muita gente para lá hoje”, comentou Marcelo, motorista que me buscou. De fato, os ingressos da 26ª edição da Baile Room esgotaram semanas antes do evento. A organização da festa lançou um lote extra que, em um piscar de olhos, acabou também. Eu cheguei antes das 23h e a portaria já estava trabalhando a todo vapor para receber o público. Belo Horizonte tem uma surpreendente pontualidade nas festas, as pessoas têm um jeito de levar o horário ao pé da letra como que para contrastar com a ousadia e o desprendimento uma vez que a festa começa — nesta noite, por exemplo, os DJs que começaram a tocar cedo com público já à sua espera terminaram tocando com umas 100 pessoas dançando no palco, tudo junto, misturado, e com o chão tremendo de tanto pular.

(Foto: @eufreitas97)
(Foto: @paulofiedsph)
(Foto: Danilo Silva - @oranduu)

Na Baile Room, tudo é sobre pista. Não importa se é um funk dos anos 2010 ou um que saiu ontem no Soundcloud e ninguém ouviu ainda: se faz dançar, entra. A última edição reuniu a revelação do (ataba)grime de 2022, Puterrier, o produtor musical de funk bruxaria e DJ Anderson do Paraíso, a DJ londrina Scar Duggy, o grupo Weird Baile, além dos DJs residentes da festa, Kingdom, Vhoor,  VKKramer e D.A.N.V., que tocam juntos. A 26ª edição era nitidamente especial para esses quatro: além de ser a estreia da festa em um espaço histórico como o CineOdeon, o line-up era o principal motivo de orgulho. Ao anunciar Anderson do Paraíso, Kingdom fez questão de dizer que ele era a referência dos residentes da Baile Room. Weird Baile é uma experiência à parte: com Bonekinha Iraquiana, Mu540, JLZ, Vhoor e Ramemes, o grupo reúne os DJs mais prestigiados do país. Com todas as CDJs ligadas ao mesmo tempo, apresenta-se um set elástico, que segura uma tensão constante entre distância e aproximação de muitas variações de funk, do bruxaria ao mandelão, com outros gêneros da música eletrônica, do grime ao drill.

“A gente tenta sempre trazer pessoas que têm som aliado com a festa, mas que também têm uma bandeira na música periférica eletrônica para defender sua experimentação” – Vhoor

(Foto: Danilo Silva - @oranduu)

Mas, com o aumento do público e a expectativa, a Baile Room pretende manter seu caráter experimental? “A Baile Room continua sendo o lugar que dá espaço para quem está experimentando”, responde Vhoor. “É legal que nesse exato momento em que estou te dando esta entrevista está tocando Anderson do Paraíso, que é um DJ de baile funk de favela aqui da cidade que é muito conhecido no cenário do funk por ser diferente: ele usa muitas trilhas de filmes de terror nos sets e tem muita visualização na favela. Como é uma coisa de Soundcloud, acaba atravessando a bolha e, às vezes, pega a página número um do Soundcloud. É muito legal ele estar tocando aqui e tem gente de fora, como Scar Duggy. Um nome da cidade de um cenário bem alternativo, mas que é também ao mesmo tempo bem popular e periférico, bota fé? A gente tenta sempre trazer pessoas que têm som aliado com a festa, mas que também têm uma bandeira na música periférica eletrônica para defender sua experimentação”.

Com curadoria impecável, a Baile Room é uma festa que te leva até as cinco da manhã com facilidade e, hoje, começa a se posicionar no mesmo espaço de prestígio de outras grandes festas, como Mamba Negra e Gop Tun. O diferencial é o público mais aberto e interessado no experimentalismo dos DJs. “Sobre esse line desse evento: muito quente”, diz Puterrier logo depois do seu show.  “Papo é reto: tem vários line aí que bota pessoas racistas, que podem estar no mainstream, mas as pessoas da pista nem ouvem tanto. Aqui toca pista mesmo: Mu540, Vhoor, eu, Ramemes, só funk ritmado. E é isso que o Brasil é.”

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