Células de energia

Por que estão surgindo tantos selos independentes e qual a importância deles no cenário musical contemporâneo?

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Fotos: Yasmin Kalaf

Estava com a sensação de muitas das pessoas ao meu redor estavam lançando ou participando de novos selos. Depois de uma rápida investigação online, confirmei minhas suspeitas. Mas, afinal de contas, por que isso está acontecendo? 

Recentemente, a Valente Records – coletivo fluminense com mais de 15 colaboradores – me convidou para escrever um texto sobre comunicação na cena Indie. O artigo em questão foi publicado em um zine chamado “Manual de Sobrevivência para Bandas Independentes” e nele estão alguns dos segredos de nomes experientes (como Vitor Brauer [Lupe de Lupe] e Fernando Schlaepfer [I Hate Flash]) sobre como transitar no circuito alternativo. Ali, tive a oportunidade de ler o que o próprio selo e produtora carioca estavam querendo passar para seu público: o bom e velho “faça você mesmo”.

“80% dos artistas do nosso casting são da baixada fluminense”, me disse Bruna Ferrarezi que, para além de fotógrafa, cuida também do marketing da Valente Records. “Nosso foco é aqui. O apoio que recebemos é da galera que entende que a cultura da região é pouco vista. Nós tivemos que começar a fazer do zero os rolês que a gente queria frequentar.” Além disso, o selo é responsável por trazer artistas “de fora” (pense em bandas como Terno Rei, Raça, El Toro Fuerte, etc.) para realizar shows por lá. “E a galera que não pode se deslocar? Trazemos, sim, e provamos que tem público aqui. De modo que se fazemos algo no centro da cidade, o pessoal logo pergunta: ‘não vai ter na baixada?’”

"Manual de sobrevivência para bandas independentes" FOTO: Bruna Ferrarezi

Só com esse bate-papo já deu para ver que foi-se o tempo em que o casting de artistas era a contribuição mais importante de um selo. Os que nasceram nos últimos cinco anos – é o caso de todos os entrevistados desta reportagem – estão, claramente, alinhados à velocidade e à fluidez da geração Z. Miguel Galvão, do selo brasiliense Quadrado Mágico, fundado em 2015 como extensão do PicniK Festival, reforça a teoria: “Acho que o selo é um suporte valioso entre os artistas. É com essa ajuda que eles podem vir a ter condições de direcionarem a sua energia para o que fazem de melhor: música, de fato.” 

Olhando para a situação levando em consideração certa perspectiva histórica, vale lembrar que, na segunda metade do século passado, as coisas eram brutalmente diferentes. Os artistas pequenos corriam atrás das grandes gravadoras que, obviamente, não davam conta (ou sequer estavam interessadas) de incorporá-los a seu catálogo. Eis que chegam os anos 1990 e, com eles, uma revolução: a internet. A maneira de ouvir música mudou tanto que só agora temos uma noção mais clara de como o mercado está se adaptando a isso tudo. Menos interessados em criar vínculos com determinados artistas, os novos selos buscam criar oportunidades para quem antes não tinha. O auxílio em suas plataformas de divulgação tanto online quanto offline é uma das estratégias.

Posso ajudar?

Cada selo, atualmente, já nasce com a suas próprias especificidades, demandas e dinâmicas de trabalho. Na gringa e por aqui, não faltam bons exemplos dessas micro instituições/empresas que continuam resistindo e se adaptando às mudanças da economia e da tecnologia. Assim, uma de suas principais atividades está ligada ao desenvolvimento estético de uma banda. Os selos ajudam com clipes, fotos de divulgação e flyers para quem participa de seu casting. Pelo menos, é assim que funcionam as duplas paulistanas da Cavaca Records – formada em 2017 por Cainan Willy e Yasmin Kalaf – e a Eu Te Amo Records – que surgiu há menos de um ano pelos colegas Cassiano Geraldo e Giuliam Uchima. 

“Ficamos amigos por conta da Vladvostok [banda paulistana] e, quando nos demos conta, desempenhávamos algumas funções em dupla (ela era a fotógrafa da banda e eu o assessor de imprensa). Depois, oficializamos que essa era uma parceria de sucesso e resolvemos tocar um projeto juntos”, relembra Cainan. O primeiro lançamento deles, inclusive, foi no susto. São eles os responsáveis por desenterrarem os arquivos de Xoxoto. Para quem não é familiar com a história do artista anônimo, explico: sua obra foi encontrada por Cainan e Yasmin em 2017 em uma CPU antiga, descolada em um brechó. Pesquisaram muito para saber do paradeiro do tal criativo, mas nunca o encontraram e, assim, decidiram honrar o seu trabalho publicando suas músicas. “Nós lançamos artistas que acreditamos e gostamos de ter a liberdade para opinar no processo de composição conceitual. Para a gente, estar próximo e auxiliar com a identidade visual, por exemplo, é algo muito proveitoso – e que pode fazer total diferença no produto final”, completa Yasmin.

Meu Nome Não é Portugas é uma banda da Cavaca Records. FOTO: Yasmin Kalaf

Na Eu Te Amo, é a união de habilidades entre um publicitário e um fotógrafo que dá o tom da casa. Juntos, eles realizam cobertura de eventos e produções audiovisuais para os lançamentos do selo. Por enquanto, o processo está ligado somente a um diálogo com os artistas e com o desejo legítimo de fazer os rolês acontecerem. “Seguimos a premissa de: ‘conseguimos ver a verdade na obra desse artista a ponto de dedicar o meu tempo pra ver ele crescer?”, explicam. Ceano, O Grande Babaca e Viktor Murer são alguns dos músicos cuja resposta para essa pergunta foi “sim”.

Somando esforços e usando a criatividade, esses pequenos nichos autorais fortalecem os números e colaboram com a pluralidade da cena que, vale lembrar, vai muito além dos limites do Sudeste. Longe de significar que participar de um selo seja primordial para que alguém possa existir como artista independente, é importante lembrar que o coletivo é uma boa opção, principalmente para quem faz arte, como Camila Garófalo da Sêla pontua: “Artista independente precisa ter todas as ferramentas ativas – e ativadas –  para que sua carreira seja impulsionada. Participar de coletivos e selos pode trazer muita força para o seu projeto. Vai que você conhece uma pessoa para estar na sua próxima música, próximo show… Não é determinante, não há nada que salve o artista hoje em dia. O que existe é uma sequência de caminhos e ações que fazem com que eles aconteçam”.

Acho que o selo é um suporte valioso entre os artistas. É com essa ajuda que eles podem vir a ter condições de direcionarem a sua energia para o que fazem de melhor: música, de fato. – Miguel Galvão, Quadrado Mágico

Abram os caminhos

Camila foi quem fundou a Sêla que está aí há quase três anos. “Costumo dizer que é um selo poliamor. Flertamos com diversas artistas para não ter compromisso de entrega com ninguém – trabalhamos com ações pontuais”, explica. Entre as empreitadas do projeto que nasceu a partir de uma aliança transfeminista estão: um site (o Mulheres na Música), um festival e uma coletânea entre outras parcerias. “Acredito que é possível e preciso impulsionar todos os estilos musicais feitos por mulheres”, justifica.

A Sêla vai além de um selo que se define por uma estética. Trata-se de um projeto que dá visibilidade a narrativas marginalizadas. O mesmo acontece com o recém-lançado Batekoo Records, uma vertente da festa criada há cinco anos, em Salvador, pela dupla Maurício Sacramento e Wesley Almeida. Nesse caso, o foco está no Funk, no Dancehall e em mais uma porção de ritmos que se misturam em suas pistas de dança sempre cheias. Os primeiros dois nomes anunciados pelo coletivo, inclusive, são Miss Ivy e Deize Tigrona.

Deize Tigrona em foto de Vivi Bacco

Participar de coletivos e selos pode trazer muita força para o seu projeto… Não é determinante, não há nada que salve o artista hoje em dia. O que existe é uma sequência de caminhos e ações que podem fazer com que eles aconteçam. – Camila Garófalo, Sêla

No selo Diáspora de Hugo Noguchi, em certa medida, segue a mesma linha, mas seu processo retoma os esforços que acontecem antes do disco existir: “Por enquanto, me ative a músicos que vieram me procurar pelo meu trabalho como produtor musical. De modo geral, percebo que a maioria dos selos são voltados para a pós-produção: distribuição, divulgação, agendamento, etc. Aqui, começamos muito antes, na pré-produção: gravação, mixagem, masterização, etc. – que tem muito mais a ver com as minhas aptidões: produtor e instrumentista.(…) Mas, o selo surge também do déficit de atenção com que é tratada a música feita por pessoas racializadas nos meios em que eu estava inserido (Rock e Canção Brasileira). Ali, a predominância branca se disfarça em uma pretensa e conveniente neutralidade racial”, explica o idealizador. Para a nova empreitada, o Diáspora conta com novas faixas dos músicos Bruno Albert e Gil Móia, além de uma parceria com o cineasta Hugo Katsuo – “o conheci quando participei do filme dele (O Perigo Amarelo nos Dias Atuais, 2019) e propus produzir um som com os poemas que ele escreveu”, relembra. 

O passado e o futuro existem acontecendo agora. Entre ideias que fogem do tradicional, há a vontade de colaborar e concretizar em conjunto. Pode ser a arte da capa de um disco ou um show fora de casa: essas redes permanecem se renovando. Se não fosse por essas pessoas tentando pensar em maneiras de viabilizar o rolê, não teríamos a volta da Deize Tigrona ou a coletânea Sêla, com músicas de algumas das compositoras mais interessantes de 2019. Em um momento em que somos cobrados de sermos cada vez mais “flex”, unir conhecimentos me parece ser uma boa ideia.

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