SINAPSE: belezas subjacentes

Lia Kohl, Jacek Dzwonowski, Tine Bek e a espuma

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras).

 

ESPUMA

Lia Kohl, Tine Bek e o chiado da vida

 

Quando assisti, há mais de 10 anos, ao vídeo do músico polonês Jacek Dzwonowski tocando uma linda melodia sobre o ruído monótono de uma torneira, senti um encantamento com o poder da música que não sentia já há algum tempo. Há nesse vídeo, em primeiro lugar, um toque de humor e espontaneidade, que torna tudo mais leve – a mesma vibe, talvez, daquele vídeo de uma porta de garagem tocando um cover de Miles Davis. Contudo, o que me fascinou vai além disso: a força de quando um momento antes trivial, um mero problema do cotidiano – uma torneira vazando, barulhenta, enguiçada – se torna algo lúdico e evocativo com o poder da arte.

É exatamente essa a sensação, agora levada a sério, que parece guiar a artista Lia Kohl, em seu álbum Normal Sounds. Nele, a violoncelista transforma ruídos do dia a dia, gerados pelos humanos – um alarme de carro, o ruído de uma geladeira, o flique-flique de um tênis sobre a quadra esportiva – na base para suas composições. Nas faixas, a artista parece primeiro mimetizar cada um desses rangidos com seu instrumento para, a partir daí, usar esses drones para construir um universo particular, que se expande em algo mais evocativo.

De acordo com a sinopse de seu álbum, Normal Sounds foca em sons que tendemos a ignorar ou ouvir passivamente. Muitos dos registros de campo no álbum são funcionais, indicando perigo (sirene de tornado, alarmes de carro), diversão (caminhão de sorvete) ou atenção (“o sinal do cinto de segurança está aceso”, “por favor, pegue seu recibo”). Outros são simplesmente subprodutos da função das máquinas: o zumbido de uma geladeira ou de um avião. Embora às vezes sejam destinados a serem ouvidos, não são feitos para serem escutados ativamente.

“Para Kohl, o tratamento desses sons age como uma prática de atenção, ou, em suas palavras, ‘uma prática de tentar estar mais vivo’. Muitas vezes, essa prática toma a forma de imitação: harmonizando as frequências já presentes de uma luz de quadra de tênis com harmônicos do violoncelo, ou combinando de maneira irônica buzinas de carros com o saxofone. Às vezes, ela aumenta o cenário sonoro de maneira mais dramática, levando-o para uma nova direção com melodias de violoncelo ou synths arpegiados. Às vezes, é difícil perceber se um som vem dela ou do mundo ao seu redor. Ela encaixa cada gravação de campo em uma cama de seus próprios sons, convidando-nos a ouvir o mundo através de seus ouvidos”.

Na capa do trabalho, há uma fotografia e uma escultura da artista Tine Bek. Para mim, uma tradução muito adequada de Normal Sounds para o campo visual. A espuma transformada em objeto decorativo, mimetizando um vaso ou qualquer que seja o ornamento que teríamos em nossa casa. Trata-se de algo funcional transportado para o mundo estético, algo que, retirado de seu contexto original, revela uma beleza subjacente, antes invisível para nossos olhos viciados pelas demandas do dia a dia.

Um pedaço de espuma amarrado de repente se torna uma forma, uma textura e uma luminosidade pacífica e interessante. Curioso pensar especificamente na espuma: um material absorvente, que minimiza impactos e absorve também o som, sendo inclusive utilizado no tratamento acústico de estúdios de gravação. Assim como a espuma, o violoncelo em Normal Sounds leva o ouvinte a se transmutar de objeto funcional em ferramenta de contemplação.

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Autor:

é músico e escreve sobre arte