SINAPSE: calotas polares

Félicia Atkinson, Olafur Eliasson e a dimensão inefável da natureza para a escala humana

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras).

 

ICEBERG

Félicia Atkinson, Olafur Eliasson e o gelo

 

Félicia Atkinson é uma artista francesa sobre a qual já escrevi por aqui, traçando sinapses entre sua música, o deserto e seus segredos. Agora, com seu novo álbum, a artista dá um giro de 180 graus e olha para outras paisagens não habitadas por seres humanos.

Space as An Instrument é um álbum que “convida os ouvintes a explorar as paisagens fantasmagóricas”, onde se é absorvido pela imensidão do céu noturno, pelo mar a perder de vista no horizonte, pelas profundidades inimagináveis dos abismos e assim por diante. De acordo com a sinopse do trabalho, a música de Atkinson “dilata a imaginação e nos ajuda a encarar o mistério do inefável”. O álbum em si é bastante plácido, intercalando gravações de campo com drones de sintetizador, procurando recriar alguma imensidão cósmica, natural, muito maior do que a escala humana. A faixa “Thinking Iceberg” traz um jogo de palavras interessante e nos coloca para pensar nos icebergs ao mesmo tempo em que os posiciona também como seres pensantes.

Essa investigação de Atkinson me fez pensar no trabalho de Olafur Eliasson, um artista islandês–dinamarquês engajado com causas ambientais. No trabalho de 2014 intitulado Ice Watch, foram colocados, no meio de Londres, enormes pedaços de gelo que descolaram dos fiordes na Groenlândia. É uma proposta esquematicamente simples – embora provavelmente uma empreitada burocrática/logística e tanto –, mas muito eficiente. Na obra, Eliasson insere um elemento completamente alienígena no cenário urbano – blocos enormes de gelo, pedaços de natureza vindos de lugares além do horizonte, a fim de materializar a dimensão sobrehumana do problema do aquecimento global.

De acordo com a crítica da época, a obra parece ter realçado os cinco sentidos dos londrinos na manhã em que surgiram de surpresa na paisagem urbana: “a pureza dos blocos translúcidos foi realçada numa manhã londrina fria, sob o sol baixo e austero do inverno (…) Observe atentamente e você verá as pequenas bolsas de ar que estalam e crepitam se você encostar o ouvido neles”. Curioso pensar na dimensão sonora de um bloco gigante de gelo derretendo, que também chamou a atenção de Eliasson, formando, em suas palavras, “um concerto de bolhas”.

No entanto, não está concentrada apenas no século 21 a preocupação da arte com questões da natureza. Em 1982, durante a Documenta 7, Joseph Beuys plantou sete mil carvalhos na cidade de Kassel, Alemanha. Em resposta à extensa urbanização do ambiente, o trabalho foi uma intervenção artística e ecológica de longo prazo e grande escala, com o objetivo de alterar duradouramente o espaço vital da cidade. O projeto, embora inicialmente controverso, tornou-se uma parte importante da paisagem urbana da cidade. De acordo com Beuys, “o empreendimento de plantar árvores oferece uma possibilidade muito simples, mas radical”.

Um projeto ambicioso, 7.000 Oaks mudou drasticamente a paisagem da cidade de 200 mil habitantes. Um spot de TV local da época capturou entrevistas com moradores entusiasmados não apenas com a sombra das árvores e um lugar para sentar nas pedras, mas também por conhecerem seus vizinhos e trabalharem juntos no projeto de plantio. Como um residente afirmou: “é arte que se relaciona com as pessoas onde elas estão”:

Seja nos blocos de gelo de Atkinson e Eliasson, ou nos carvalhos de Beuys, a beleza é parte fundamental da mensagem. Se quisermos compreender os efeitos das mudanças climáticas, ver os glaciares pessoalmente os torna mais palpáveis. Como disse Eliasson, “ver o gelo derreter diante dos seus olhos transmite a urgência com que devemos agir de uma forma que gráficos ou textos jamais conseguiriam”. Em todas essas tentativas, está em jogo a dimensão inefável da natureza para a escala humana. Trazer o ambiente natural para dentro do urbano, e assim, torná-lo visível, palpável e, é claro, audível. Uma coisa é ouvir falar do derretimento das calotas polares, outra é sermos capazes de apreendê-la com o nosso corpo.

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Autor:

é músico e escreve sobre arte