Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (sempre às quartas-feiras).
ESPÍRITO ANIMAL
Félicia Atkinson, Georgia O’Keeffe e o deserto
Félicia Atkinson é uma artista interdisciplinar francesa, que, além de trilhar caminhos pelas artes plásticas, constrói paisagens sonoras com suas músicas. Seu álbum de 2018, intitulado Coyotes, se ocupa com o deserto, mais especificamente com o deserto do Novo México, situado na fronteira entre México e Estados Unidos.
Inspirado por uma viagem da artista ao local, Coyotes é feito de sintetizadores, que soam como uma tempestade de areia durante a noite, e sinos gotejantes que ecoam para além do horizonte. Além disso, sobre a harmonia, a artista declama uma poesia de sua autoria, o que dá à sua música um tom melancólico.
O álbum, de apenas duas faixas, nos leva para uma jornada, mais do que geográfica, sentimental. A figura misteriosa do coiote aparece quase como um espírito animal, uma presença mitológica. É algo que habita o deserto, mas que nunca conseguimos enxergar, a não ser na forma de miragem.
Uma das faixas é intitulada “Abiquiu”, não por acaso, o nome de uma cidade no deserto onde morou a pintora Georgia O’Keeffe, uma das mais importantes artistas estadunidenses da arte moderna. O’Keeffe se mudou para o deserto no ano de 1929 e dedicou a ele sua atenção, vivendo em isolamento, pintando suas paisagens e construindo o imaginário que nos ajuda a enxergá-lo hoje em dia.
Uma maneira que O’Keeffe encontrou de se relacionar com o deserto foi pintando ossadas de animais. Na tela From the Faraway, Nearby, por exemplo, ela pinta os ossos de um veado sobre a uma paisagem em cor de areia que se estende até o horizonte. Um olhar mais atento vai perceber que a imagem apresenta duas galhadas sobrepostas, como se um animal místico resultasse dessa combinação misteriosa. Enquanto isso, o título da pintura, que não é literal, mas apresenta as palavras Faraway (Distante) e Nearby (Próximo), enfatiza a o efeito poético da composição
Em uma carta escrita em 1943 para o fotógrafo Alfred Stieglitz, Georgia O’Keeffe dá pistas para essa relação paradoxal com os animais do deserto: