SINAPSE: dar nome aos gatos

O eterno tango azul dos felinos

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras – nesta semana, excepcionalmente, publicada na sexta-feira).

 

DAR NOME AOS GATOS

O eterno tango azul dos felinos

 

Da mesma maneira que chegou, você se foi. Há três anos, depois de uma tempestade, ouvimos o seu chamado atravessando as frestas da porta da frente de casa, um miado agudo e persistente, pedindo abrigo. Você entrou como um tufão dentro de nossa casa, sem pedir licença e, assim, também em nossas vidas. Pequena, doente e frágil, você se acomodou dentro de um sapato que encontrou debaixo da cadeira e descansou pela primeira vez ao nosso lado.

Nos primeiros meses, atravessou inúmeros problemas de saúde, decorrentes de sua luta nascitura pela sobrevivência, a chuva, a falta de amamentação, a rinotraqueíte adquirida na rua, que te acompanhou para sempre. Uma vez adotada, creio que tenha sido feliz, porque comeu muito, dormiu mais ainda e, acima de tudo, viveu livre uma vida solta pela natureza, folgada para correr e explorar sabe-se lá qual mistério selvagem diante de ti. De manhã, anunciava o nascer do dia com um miado que, com o tempo, se tornou macio e delicado.

Seu carinho se traduzia nas ondulações da coluna vertebral, e na maneira como você se entrelaçava no meio de nossas pernas para se proteger. Era discreta e reservada, e o sintoma maior de sua bondade era aceitar tratamento médico com um ronronado, engolindo comprimidos sem reclamar, fechando os olhos quando limpavam seu nariz, e dormindo tranquila durante as inalações de eucalipto que te ajudavam a respirar. Amou seu primeiro amor, um cachorro vira-lata da vizinhança, com o qual brincava de pega-pega e depois sonecava de mãos dadas. Depois, cuidou de sua irmã, que chegou para encerrar, ao final de um ano, seu reinado solitário. Você nos ensinou a graça e também como ser selvagem.

Quando apareceu, você era uma esfera peluda e preta, e nós a batizamos de Grumixama, por conta de sua semelhança com a frutinha brasileira, redonda e doce. Esticada e lânguida pelo sol, acostumou-se a dormir embaixo da roseira. Quando voltava para casa, no fim da tarde, justamente por conta de suas aventuras, cheirava a alecrim, mirra ou manjericão. Com o tempo, seu pelo preto se transformou num pano de fundo de inúmeros pontinhos brancos, mimetizando o universo com o qual, ontem, repentinamente, você se fundiu.

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Os gatos são parte indistinguível da história da cultura e companheiros fiéis dos artistas. Nas fotos, estão lá Cortázar, Hemingway e Jorge Luis Borges com seus felinos de estimação. Está Salvador Dalí com a jaguatirica Babou, está Georgia O’Keeffe com um siamês no deserto, estão Matisse e Minouche. Na música da ópera Os Saltimbancos, Chico Buarque escreveu sobre você: “Eu sou mais eu, mais gata / Numa louca serenata / Que de noite sai cantando assim / Nós, gatos, já nascemos pobres / Porém, já nascemos livres”. Nos Estados Unidos, Sufjan Stevens chamou o seu selo musical de Asthmatic Kitty, que também foi uma homenagem a você. Hoje, enquanto escrevo, ouço a peça de música clássica Waltzing Cat, escrita por Leroy Anderson, pensado em seu eterno tango azul.

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T.S. Eliot escreveu no poema The Naming of Cats (“Dar Nome aos Gatos“) sobre você, Grumi, sobre a realidade que lhe pertence, sobre o seu acesso ao mistério que eu nunca fui capaz de alcançar, apenas de intuir e, com isso, admirar você na mesma profundidade em que você conheceu a vida: “Se vires um gato em profundo mutismo / Saibas a razão que o tempo lhe consome: / Sua mente paira a divagar no abismo / E ele pensa, e pensa, e pensa no seu nome: / No inefável afável Inefanifável / Fundo e inescrutável sentido de seu Nome”.

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Autor:

é músico e escreve sobre arte