SINAPSE: detrito e harmonia

Olli Aarni, formigas, replicantes, sons e ruídos

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras).

 

FITA DE MÖBIUS

Olli Aarni, formigas e replicantes

 

Muurahaisia ja lentokone (Formigas e um Avião, em português) é um trabalho experimental de gravação de campo do artista finlandês Olli Aarni. Como o nome diz, o artista colocou um microfone sobre uma trilha de formigas, gravando o ruído de sua atividade. Enquanto isso, um avião sobrevoa a paisagem e se incorpora ao cenário como mais uma força da natureza. Muurahaisia ja lentokone é uma espécie de ASMR espontâneo, com o som de estalos agudos e aconchegantes que remetem a coisas “naturais”, como folhas farfalhando, fogo crepitando, galhos secos estalando e assim por diante. Enquanto isso, um drone de frequências mais graves, proporcionado pelo avião, costura o cenário em algo que preenche os ouvidos.

Gravado durante a pandemia, o trabalho de Olli Aarni dá a entender que o avião voava vazio, sem passageiros, no momento em que foi capturado. Provavelmente para não perder uma vaga na escala dos aeroportos, ou enfim, sabe-se lá por qual razão. O acontecimento nos faz pensar sobre o papel dos humanos na ecologia, por um lado desperdiçando recursos e por outro, agindo automaticamente, como se o avião fosse uma força autônoma, parte de um ecossistema.

Quem já viu formigas cortadeiras trabalhando sabe que se trata de uma visão impressionante: milhares de insetos abrindo clareiras em uma vegetação densa em questão de poucas horas. No meio da mata fechada, é fácil ver o caminho limpo deixado por elas. É um acontecimento que me lembra do trabalho do artista plástico Richard Long como um todo, mas mais especificamente a obra chamada A Line Made by Walking. A escultura, uma espécie de não-objeto, consiste justamente na impressão do solo causada por um caminhar insistente do artista sobre a grama. Diferentemente dos caminhos animais, no entanto, a linha de Long é reta, uma construção geométrica perfeita, que não ocorre na natureza.

O trabalho aponta para o interesse de Long sobre questões como impermanência, movimento e relatividade. Desde os anos 1960, ele nunca mais deixou de experimentar com caminhadas sobre a natureza, refletindo o “equilíbrio entre os padrões da natureza e o formalismo das ideias humanas abstratas”. Nesta vertente artística que se convencionou chamar de Land Art, a intervenção humana sobre a natureza denota a ideia de cultura não como coisa isolada, mas como uma ação que é o resultado da vida reagindo ao seu entorno.

Certa vez eu li a interpretação de um filósofo que dizia que animais como o bicho-folha se camuflavam não para se protegerem dos predadores, mas sim por conta de sua imensa comunhão com o seu entorno. No livro Dark Ecology, Timothy Morton argumenta que a consciência ecológica na atual era do Antropoceno assume a forma de um estranho laço ou faixa de Möbius, torcida para ter apenas um lado: “No filme Blade Runner, o replicante Deckard percorre esse caminho quando descobre que pode ser o inimigo que recebeu ordens de perseguir. Em Dark Ecology, a consciência ecológica assume esta forma porque os fenômenos ecológicos têm uma forma circular que também é fundamental para a estrutura de como as coisas são“.

Assim como um bicho-folha, Olli Aarni situa-se num paradoxo “onde a música ambiente encontra o seu lado experimental e documental, borrando limites entre gêneros e propósitos da música” e, aliás, entre a própria distinção entre som e ruído, entre o que é detrito e o que é harmonia, e assim por diante, colocando em jogo a nossa noção sobre a separação fundamental entre humanidade, tecnologia e natureza.

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ARTISTA: Olli Aarni

Autor:

é músico e escreve sobre arte