Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras).
CRIPTOGRAFIA
Yowie, Captain Beefheart e as batalhas ancestrais
Yowie é um trio instrumental de St. Louis que acaba de lançar o seu primeiro disco, intitulado Cryptooology. Com ritmos intrincados e velocidade acelerada, a música do grupo soa como um tropeço sobre uma caixa de ferramentas – notas musicais metálicas como parafusos e molas que saem ricocheteando por aí, em compassos matemáticos difíceis de acompanhar.
Apesar de soar caótica, a música do trio, dá para notar, exige disciplina, tanto dos músicos, que obviamente estão lidando com equações musicais de segundo grau em suas composições, quanto do ouvinte que, se prestar atenção, vai enxergar um organismo complexo em funcionamento, onde infinitas variações – nos compassos, no andamento e nas afinações – constroem o esqueleto de alguma criatura mítica perdida pelas eras geológicas.
O yowie, que dá nome à banda, é uma versão australiana do Yeti, ou Pé Grande. Um texto na página do grupo diz: “O seu profundo isolamento geográfico torna a Austrália um habitat improvável para um elo perdido que poderia existir durante milhões de anos sem ser documentado pela ciência, especialmente porque nenhum primata é nativo do continente. No entanto, o território sul reivindica sua própria versão do Pé Grande, o Yowie. A longa história da criatura remonta às lendas aborígenes. Um conto popular aborígene explica que, quando o seu povo migrou para a Austrália, há milhares de anos, encontrou no novo continente uma raça selvagem de homens-macacos. Os ancestrais dos aborígenes entraram em guerra contra os homens-macacos e, no final, os humanos triunfaram”.
Essa história de batalhas entre seres ancestrais acabou por me lembrar de outro animal monstruoso – aquele presente na capa do álbum Trout Mask Replica, de 1969, da banda americana Captain Beefheart and His Magic Band. Apesar de ser um disco especialmente “difícil”, hoje é um marco cult na história da música norte-americana. Estimulados por Frank Zappa, os membros da banda adotaram codinomes como Captain Beefheart, Drumbo, Zoot Horn Rollo, Antennae Jimmy Semens, Rockette Morton e The Mascara Snake. As alcunhas, influenciadas pela psicodelia da época, apontam para um álbum criado sob uma influência fantástica, feito por seres que habitam algum limiar entre o real, o mitológico e o terrível.
Segundo relatos dos participantes no projeto, Don Van Vliet, o Captain Beefheart, era autoritário, obcecado e abusivo, e espremeu a saúde física e mental dos músicos até onde pôde. Don Van Vliet compôs as músicas no piano, instrumento que não dominava, que depois foram transcritas pelo baterista e repassadas para os outros integrantes, que ensaiaram por meses e meses a fio músicas intrincadíssimas e praticamente impossíveis de executar. Afinal, quando finalmente entraram em estúdio, foram capazes de gravar as 20 faixas instrumentais em apenas uma sessão. Apesar de ser comumente confundida a olho nu como um exemplar de música atonal, arrítmica ou improvisada, na verdade Trout Mask Replica é um exercício de disciplina absoluta, que espanou os membros da banda ao levá-los a condições desumanas de criação.
Mas muito da importância de Trout Mask Replica, creio eu, vem da dedicação também de terceiros que, posteriormente, viriam a escavar os seus segredos, interpretando-o minuciosamente. Aqui entra a criptologia como a arte de desvendar mistérios incompreensíveis, desde harmonias e melodias tramadas umas nas outras, compassos musicais e tonalidades oscilantes, até particularidades na gravação dos instrumentos – no caso de Trout Mask Replica, a capacidade distinguir os chiados que vêm das incomuns palhetas de aço usadas na guitarra e das folhas de papelão na bateria, colocando, enfim, o enigma e sua solução como partes constituintes de uma mesma manifestação.
Mais do que a música em si, é a capacidade de desvendar os seus segredos que chama a nossa atenção. Nos vestígios destas batalhas ancestrais, encontramos mensagens crípticas para o futuro: o cuidadoso ato de escavar entre os detritos revela heranças escondidas em nossa genética musical.