Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras).
ESPÓLIOS
Mount Eerie, The Cure, Massive Attack e os espólios da arte
Tenho ouvido Night Palace, o novo álbum do projeto americano Mount Eerie, que é especialmente marcado por imagens de fumaça e escombros. Exibindo títulos como “Huge Fire”, “Breaths”, “Broom of Wind”, “(soft air)” e afins, a música de Phil Elverum se intercala entre canções e ruídos, como se estivéssemos presenciando algo deteriorado, como alguma evidência histórica musical.
Night Palace fala sobre forças naturais, sobre pássaros, sobre a estranha sensação de ser o “dono” de um punhado de árvores no seu sítio, e assim por diante. Até que na faixa “Non-Metaphorical Decolonization”, o músico declara quase como um manifesto. “The place I live has a name / But there’s another one, older / Emerging through the mist / I saw where I was as it was / Before we called it anything / Now we live in the wreckage of a colonizing force”, ele diz, aludindo a uma imagem de um país esquecido, que finalmente aflora – uma vez que o atual, que sobrepunha o anterior, está em ruínas.
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Por acaso, senti mais ou menos a mesma energia no novo álbum do The Cure, Songs of a Lost World. Embora, é claro, cada trabalho tenha um tipo de investimento bastante diferente um do outro, sendo a música de Elverum muito mais experimental e distante do mainstream do que a da clássica banda inglesa. No entanto, há uma sombra, uma neblina, enfim, algo obscuro em comum entre os dois.
Quando escrevi sobre Songs of a Lost World, usei a imagem de Caspar David Friederich, já que a obra do pintor alemão do século 18 simboliza uma época em que o ocidente atinou que olhar para a natureza era olhar para si mesmo. Na minha perspectiva, The Cure olha para a própria história para só agora perceber coisas antes impossíveis de serem vistas sem o distanciamento necessário. Como escrevi, Songs of a Lost World traz na capa “a imagem de uma estátua de um reino esquecido, que sobrevive nos escombros da história apenas como arqueologia, ou como uma obra-prima, a figura de uma divindade usurpada de seu reino original e que hoje sobrevive empoeirada no acervo de algum museu europeu”.
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Interessante colocar os dois trabalhos em perspectiva e enxergar nessa combinação algo que tenha a ver com a repatriação de artefatos históricos, este fenômeno relativamente recente no mundo dos museus. São vários casos ao redor do mundo – aliás, motivo para bastante discussão no âmbito das artes – que visam a devolução de artefatos roubados, atualmente guardados por instituições europeias, aos seus respectivos países de origem.
No Brasil, temos por exemplo o caso do manto tupinambá, um manto sagrado feito com penas vermelhas de guará, que foi roubado pela Dinamarca sabe-se lá como e em qual momento da história, mas graças aos esforços de lideranças indígenas e de uma discreta, porém complexa articulação diplomática, voltou finalmente ao Brasil.
Com o desaparecimento do manto, o povo tupinambá também havia oficialmente se apagado do radar da Funai, escondido nos escombros do tempo. Num processo simbiótico, a emergência de um acarretou a insurgência do outro. Nas palavras de Maria Valdelice Amaral de Jesus, a cacica Jamopoty: “os livros dos gananciosos diziam que a gente já estava extinto, mas o manto voltou para nos dar respeito”.
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Para encerrar, uma outra perspectiva, na qual enxergamos como a História com agá maiúsculo é capaz de causar uma inflexão em nossa mitologia pessoal. Falo de Massive Attack na faixa “The Spoils”, na qual Hope Sandoval canta “I somehow wanna keep you the same”, evocando algum processo de calcificação que resiste à passagem do tempo. O clipe, com atuação de Cate Blanchett, mostra a atriz gradativamente se destacando de todas as máscaras exteriores para atingir algo primordial, ósseo, cravado na pedra fundamental de si.