SINAPSE: ilha de ruídos

Shakespeare, Modern Nature, Tacita Dean e encontrar uma nova maneira de enxergar as coisas

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (sempre às quartas-feiras).

 

 

A TEMPESTADE

Modern Nature, Shakespeare e a ilha.

 

Modern Nature é um projeto do músico inglês Jack Cooper. Seu disco Island of Noise, lançado no começo do ano, é uma meditação sobre a condição humana em tempo de ansiedade climática. Com uma sonoridade que combina saxofone, piano, contrabaixo, percussão e uma guitarra limpa e cristalina, o disco oferece um ambiente musical complexo e intricado, que tenta dar conta de interpretar o complicado mundo em que vivemos.

O músico organizou, para além do disco em si, o lançamento de um livro que acompanha a edição em vinil, no qual aparecem letras e partituras, além de contribuições tangentes ao tema como textos do poeta Robin Robertson, do micologista Merlin Sheldrake, do escritor Richard King e ilustrações de Sophy Hollington.

Island of Noise foi inspirado n’A Tempestade, a última peça de Shakespeare, que conta a história do feiticeiro Próspero que, ao invocar uma tempestade, faz com que um navio naufrague na ilha em que ele se encontra exilado. O que chamou a atenção de Cooper ao reler a história foi a frase “be not afeard, the isle is full of noises” (nada tema, a ilha está cheia de ruídos), que serviu de gatilho para a criação das composições. A citação, de acordo com Cooper, “resumiu o que eu estava pensando sobre o tempo, sobre a natureza da música, o ruído e o silêncio, o caos e a confusão que pareciam impossíveis de navegar”.

Diz um texto no release do disco: “a história da ilha é contada através dos olhos de um estranho, chegando e tentando entender o mistério e o caos. O que eles pensam dos sistemas da ilha, seus costumes, seus habitantes e suas crenças. Como um estranho interpretaria a desigualdade e a divisão? Onde encontraria consolo, compaixão e amizade?”

Island of Noise também conta com um filme, feito em parceria com Conan Roberts. A edição reúne horas de arquivo capturadas pelos artistas. As imagens são, majoritariamente, cenários da natureza: um campo coberto de neve, um charco com vegetação densa, uma onda que quebra na orla do mar em um dia chuvoso. O olhar parece ser, como na história da ilha, a de um estranho citadino que, pela primeira vez, olha para a natureza com atenção.

Esses redutos naturais, nas beiras da cidade, onde a natureza resiste ao avanço do concreto, me lembrou o trabalho de uma artista inglesa chamada Tacita Dean, que também se preocupa com a representação de paisagens desoladas. Seu filme, chamado Antígona, também se apropria de um clássico da literatura. Nele, a artista imagina a figura de Édipo, expulso de Tebas, vagando em meditação sobre a tragédia que lhe acometeu.

A artista coloca Édipo num contexto contemporâneo, como se Tebas fosse uma pequena cidade da Inglaterra. Dean reflete, através da figura do personagem, sobre seus próprios conflitos interiores. Ao vagar por lugares onde a cidade e a natureza estão abandonadas, ela evoca uma espécie de abandono interior.

No mesmo espectro sonoro de Modern Nature, meio singer-songwriter, meio art rock, está o compositor Owen Pallett. A semelhança entre ambos, para mim, para além da musical, está na maneira um pouco sisuda, um pouco intelectual de encarar a vida. As preocupações de ambos também circundam o mesmo tema, já que há dois anos, o artista lançou um álbum chamado Island.

A música de Owen Pallett chamada “The Riverbed também faz uma metáfora natural, e fala de uma angústia existencial, comparando-a ao leito de um rio.  A imagem lembra a clássica figura de Ofélia, outra personagem shakespeariana, que após decepcionar-se com Hamlet, afoga-se tragicamente nas águas de um rio da Dinamarca. Uma tempestade também passa pela cabeça de Pallet, que canta: “thunderhead, oh thunderhead, I’ll be your riverbed”.

A capa de Island of Noise coloca plantas e animais em um mesmo plano. Sem perspectiva e sem uma pirâmide que remeta a qualquer hierarquia de cadeia alimentar, todos coexistem em igualdade. Essa ideia parece o reflexo de uma nova percepção para Cooper, que, depois de se mudar para uma cidade pequena no interior da Inglaterra, descobriu um novo senso de comunidade.

“A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria, sem sentido algum”. Essa citação, uma das mais famosas de Shakespeare, está na peça derradeira do bardo inglês. A história começa com os tripulantes de um barco prestes a afundar, no meio de uma tempestade em alto mar. No entanto, a angústia é passageira: nos ruídos da ilha, os personagens encaram os seus medos e encontram uma nova maneira de enxergar as coisas.

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ARTISTA: Modern Nature

Autor:

é músico e escreve sobre arte