SINAPSE: maturação, mudança e continuidade

Travis, Sebastião Salgado e a invisibilidade

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras).

 

INVISIBILIDADE

Travis, Sebastião Salgado, como desaparecer completamente

 

Guardo o álbum The Invisible Band, da banda escocesa Travis, com carinho na minha prateleira e também em minha memória. Comprei logo depois do lançamento, lá no longínquo ano de 2001, quando entrava na adolescência. Desde a primeira audição, me identifiquei imediatamente com os tons melancólicos da banda que ressoavam diretamente na minha jovem angústia existencial da época. Produzido por Nigel Godrich, The Invisible Band é um álbum redondo, intercalando dissonâncias e harmonias muito bem resolvidas, timbres adocicados e simples progressões de dó, ré e mi menor. A capa, na qual você dificilmente nota a presença da banda, diminuta sob uma árvore imensa, sublinha o tema da invisibilidade.

Por isso, me surpreendi ao ver a figura de Fran Healy na recente entrevista que ele deu para o Monkeybuzz. Agora, na altura de seu 10º disco, ele ostenta um cabelo muito mais chamativo – embora também mais ralo –, em tom de laranja fluorescente. Ou seja, diferente do Fran Healy que preferia passar despercebido, agora o músico chama a atenção. Nas músicas novas, Healy canta com a mesma doçura de antes, mas muda um pouco de perspectiva.

Na conversa, o ato de envelhecer aparece como tema espontâneo. Fran Healy fala de sua trajetória como compositor, vendo a si mesmo de maneira diferente em relação a seu ofício, mas fala também das músicas em si, que precisam passar por um processo de maturação, guardadas na prateleira por meses e meses antes de serem submetidas ao vaticínio final: a decisão de definir se são boas o suficiente para serem mostradas ao mundo ou não. Ele diz: “com o tempo, a melancolia começa a ir embora e dá espaço para a alegria. Mas há um equilíbrio também – a música pode ser melancólica e, ao mesmo tempo, te animar”.

Ao ser recentemente perfilado, o fotógrafo Sebastião Salgado também fala sobre o seu envelhecimento e, curiosamente, traça uma analogia de seu processo criativo com a música. Mais especificamente, ele coloca a música como uma linha de continuidade que o ajuda a processar as mudanças de seu ofício, que mudou do analógico para o digital ao longo de sua carreira. Ele diz:

“No início de minha carreira, usava câmeras analógicas com filmes de 36 poses […] Eu perdia a concentração sempre que o filme acabava. O simples ato de rebobinar a película, retirá-la da máquina, guardá-la e substituí-la já me roubava o foco. Com o tempo, notei que permaneceria concentrado se cantasse enquanto fotografava e prosseguisse cantando no momento de trocar o filme”.

E enquanto muda, Salgado parece enxergar uma continuidade que o atravessa, ao declarar: “Desde o princípio, meu trabalho resulta dos elementos que absorvi no interior de Minas Gerais quando pequeno. O que me guia é a herança visual daquela época. Eu a carrego em mim. Por isso, minha fotografia continua praticamente a mesma. Houve poucas alterações no decorrer do tempo. Envelhecer não significa tirar fotos melhores”.

É fácil perceber a retórica romântica de Salgado na sua fala, dizendo que possui dentro de si algo preservado de alguma fonte original, algo que persiste, metaforizada na música que canta enquanto trabalha. No entanto, é inegável que seu trabalho se modifica, tanto técnica quanto tematicamente, com o passar do tempo. O que não significa necessariamente que uma fase de sua vida seja objetivamente melhor do que a outra, apenas distinta.

O que me leva finalmente a um texto antigo do crítico de cinema Richard Brody, no qual ele fala sobre o senso comum de atribuir as estreias dos diretores de cinema aos seus melhores momentos como cineastas. Ele escreve: “se você acha que o primeiro ou segundo filme de alguém em uma longa carreira é o melhor, você realmente não gosta do trabalho dele. Os artistas crescem. […] O relacionamento humano essencial do qual depende a ida ao cinema é aquele em que o próprio mundo interior vibra com os tons de outra pessoa e é significativamente reajustado, mudado de forma duradoura, no processo”.

Entre maturações e continuidades, Brody coloca em questão a mudança no trabalho artístico. Ele evoca o ato de acompanhar a biografia de um diretor como um processo de diálogo, ou seja, que muda junto como o espectador: com a passagem do tempo, artistas mudam, sua obra também, mas, principalmente, mudam os espectadores e suas expectativas em relação a eles.

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ARTISTA: Travis
MARCADORES: Sebastião Salgado

Autor:

é músico e escreve sobre arte