Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras – nesta semana, excepcionalmente, publicada na sexta-feira).
FITZCARRALDO
A Amazônia re-imaginada e vista de dentro
O projeto Amazônia Re-imaginada, com dois álbuns lançados até agora, agrega faixas que utilizam gravações de campo do artista Thelmo Cristovam, registradas em 2006 nos arredores do Lago Mamori, no estado do Amazonas, e do material de Dave Phillips, coletado em Challua Cocha, Rio Napo e Yasuni National Park, na Amazônia Equatoriana, em 2011.
Em suas músicas multidimensionais, ouvimos pássaros, insetos, folhagens, o vento, e assim sucessivamente, até que, dentro dessa textura de detalhes infinitos, comecemos a imaginar a nossa própria natureza. O trabalho nos põe para pensar os sons da floresta como uma comunicação ecossistêmica, da qual desaprendemos a fazer parte: como os insetos se comunicam com as árvores e, subsequentemente, conosco?
No Brasil colonizado, nunca aprendemos a pensar a floresta. Fomos incapazes de interiorizar os seus mitos, a sua energia, a sua dinâmica – metabolizar a sua existência em nossa cultura. No entanto, se quisermos considerar alguma possibilidade de futuro, temos que olhar para a floresta.
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É claro, a floresta sempre esteve lá. Mas, para quem não a habita, ela simboliza justamente o desconhecido, a parte escura e inacessível do mundo. É o lugar de forças em ação que, para desespero da civilização ocidental, são impossíveis de controlar. “Florestas não têm boa reputação no Ocidente”, escreve João Moreira Salles em seu livro intitulado Arrabalde.
Penso no filme Fitzcarraldo (1982), de Werner Herzog, que conta a história da loucura de um homem que tenta transportar um navio sobre uma montanha dentro da floresta amazônica – um reflexo das próprias ambições faraônicas do diretor.
Em um documentário feito durante a filmagem caótica do filme, Herzog compartilha a sua impressão da floresta: “É como se uma maldição se espalhasse por toda a paisagem, e quem adentra muito fundo nela tem sua parte nessa condenação. Somos amaldiçoados com o que estamos fazendo aqui. É uma terra que Deus, se existir, criou com raiva, é a única terra onde a criação ainda está inacabada. Olhando de perto o que está ao nosso redor, há algum tipo de harmonia, é a harmonia do assassinato avassalador e coletivo, e nós, em comparação com a vileza articulada, a baixeza e a obscenidade de toda esta selva, nós, em comparação com essa enorme articulação, apenas soamos e parecemos frases mal pronunciadas e incompletas de um romance suburbano barato e estúpido”.
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Amazônia Re-imaginada faz parte de um projeto maior, reunindo compositores residentes nos países Amazônicos que atuam nos campos da ecologia acústica, gravação de campo e novas tecnologias, sintonizados com os desafios da nossa época.
De acordo com uma sinopse do projeto, “neste trabalho, as noções de escuta pós-colonial, ancestralidades, territórios sonoros, são algumas das nossas ferramentas conceituais para abordar criativamente e reimaginar as paisagens sonoras da floresta amazônica, traçando uma poética inspirada nas suas diversas dinâmicas ecossistêmicas e nas atividades do antropoceno”. Assim, a Amazônia Re-imaginada propõe que escutemos a floresta com atenção e, assim, sejamos capazes de construir uma nova mitologia, vista de dentro para fora, e que lhe faça jus.