SINAPSE: na beira do significado

Djrum, Dirty Projectors e Lydia Ourahmane e a busca pela linguagem

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras).

 

NA MARGEM DA EXPERIÊNCIA

Djrum, Dirty Projectors e Lydia Ourahmane no limite

 

Escrevi recentemente sobre o novo EP do músico londrino Felix Manuel, que, sob o codinome Djrum, compõe faixas de techno e dubstep a partir do encontro de elementos inusitados – no caso, batidas intrincadas de percussão e o timbre diáfano da flauta.

O que me chamou a atenção foi a capa de Meaning’s Edge, uma pintura que revela a silhueta de pedras empilhadas umas sobre as outras, o mesmo padrão presente na porta de seu estúdio. A metáfora me deixou intrigado: o exercício de empilhar pedras é uma prática zen que reflete sobre o equilíbrio. Fiquei pensando, porém, no ponto de contato improvável que faz com que a estrutura entre em aprumo, permitindo que as coisas se estabilizem momentaneamente.

No caso de Djrum, a percussão de alta performance acaba se interconectando com a melodia da flauta. Uma coisa interfere na outra de forma positiva, transformando tudo numa tessitura única. Algo acontece nesse instante invisível. O encontro das pedras, se violento, gera a faísca para o fogo, análoga à chama fundamental que desperta o pensamento criativo no homo sapiens. No entanto, se depositadas delicadamente uma sobre a outra, produzem uma estrutura paradoxal, algo rígido em seu estado de fragilidade permanente, como se pudesse se desfazer com o vento. São situações liminares, na “beira do significado”, como sugere o título do EP: algo que não é mais o que foi, mas ainda também não se transformou completamente — a expressão pura em busca da linguagem.

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Penso na música “Maybe That Was It, presente no agora clássico álbum Swing Lo Magellan, da banda Dirty Projectors. Minha favorita do grupo, é uma canção em busca de se tornar uma música — algo caótico que é ao mesmo tempo hipertrabalhado, um estado de espírito tentando se transformar em composição. Fruto da mente matemática de David Longstreth, a música oscila entre modos maiores e menores, tempos e contratempos. A letra, na beira do surrealismo, levanta imagens de acontecimentos em que uma coisa se transforma em outra: uma superfície que apodrece com a umidade ou um animal morto que é tomado por larvas. Na minha interpretação, há também uma alusão ao poder da linguagem, que pode se tornar a fundação — um tijolo — ou a destruição — a arma — de algo: “If you saw a weapon that so smoothly transfixed / Cylinders of language pounded into bricks / Maybe that was it.”

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O que me leva finalmente ao trabalho da artista contemporânea argelina Lydia Ourahmane, que acontece sempre em limiares invisíveis. O objetivo da artista parece ser suscitar no visitante a dúvida sobre o que está vendo ou ouvindo, ou até sobre se, de fato, há algo para ser visto ou ouvido. Na obra Solar Cry (2020), por exemplo, ela utiliza oito transdutores e quatro amplificadores embutidos em uma parede para tocar uma gravação de 87 minutos de silêncio captado no planalto desértico de Tassili n’Ajjer. Para ouvi-la, é preciso encostar o corpo na parede e permitir que o som reverbere (pelo corpo).

A presença irredutível do sol marca a paisagem saariana de Tassili, um parque nacional no extremo sudeste da Argélia e terra natal de Ourahmane. O local, inóspito, é atravessado apenas por militares, tuaregs e turistas; a paisagem configura um palco das forças invisíveis da geopolítica, sempre tensionada pela história colonial do lugar. Por mais que seja atravessado pela tensão humana, invisível, mas muito palpável, existe ainda outra dimensão inaudita que sobressai na experiência do deserto, uma que não pode ser articulada pela linguagem: o silêncio milenar que emana dali.

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Autor:

é músico e escreve sobre arte