SINAPSE: no limiar da linguagem

Claire Rousay, Keaton Henson, Arvo Pärt e tintinnabulação

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (sempre às quartas-feiras).

 

 

DEPOIS DA PALAVRA

Claire Rousay, Keaton Henson, Arvo Pärt.

Claire Rousay é uma musicista do Texas que, através de sobreposição de camadas sonoras em sua música, imprime poesia na banalidade da vida cotidiana. Em seu álbum mais recente, intitulado everything perfect is already here, ela aprofunda a pesquisa que já vinha desenvolvendo em trabalhos anteriores com a criação de paisagens sonoras, misturando gravações de campo – como o barulho de alguém lavando a louça, por exemplo – com diálogos, ruídos eletrônicos e melodias de violino.

Logo no início do disco, que tem apenas duas faixas de 15 minutos de duração cada, ouvimos uma pessoa balbuciando palavras soltas, como “eu acho”, “hmmm” e “meu”. A impressão é a de alguém que começa a formular um pensamento, na tentativa de compreender alguma coisa, entretanto sem conseguir transpor a barreira da emoção para a linguagem.

Diz um texto em sua página no bandcamp: “quando as palavras desaparecem no início de everything perfect is already here, a instrumentação ornamentada está esperando para preencher um vazio deixado pelo colapso da linguagem. No entanto, fica claro à medida que traçamos o caminho de colagens sônicas de Rousay que as quebras, tanto do significado quanto da melodia, servem como um lugar de descanso”.

A música de Claire Rousay se dá no limiar da linguagem, onde narrativa e abstração se confundem e evocam o sentimento de uma experiência banal e, ao mesmo tempo, indizível. No clipe para a faixa “a kind of promise”, presente no disco a softer focus, vemos a imagem de uma janela aberta, que se intercala com a de uma cozinha e depois com a de um jardim. Enquanto todas elas se sobrepõem, forma-se a figura completa de intimidade no cotidiano de alguém, que coloca cerveja num copo e ouve um disco de vinil numa tarde qualquer.

Keaton Henson é um músico inglês que nunca fez questão de esconder a sua introversão. Uma ocasião que ilustra bem a situação é essa entrevista em que preferiu responder com desenhos ao invés de palavras. Henson é compositor de canções inclinado ao folk e toca uma guitarra delicada enquanto canta com uma voz enfraquecida e cheia de ar. Ao longo de sua carreira, no entanto, o músico migrou gradativamente para o piano e, com ele, para a música instrumental.

Romantic Works é o seu primeiro trabalho nessa linha, uma que ele chamou de Bedroom Classical, por ter sido composto e gravado dentro do quarto do músico. O álbum, que usa também colagens de sons ambientes, é, ao contrário de seus antecessores, expansivo. Nessas peças clássicas contemporâneas, Henson atinge esferas emocionais diferentes daquelas confessionais que conseguia com voz e violão. O abandono da linguagem verbal faz o trabalho do músico ganhar força.

O trabalho de Henson parece muito influenciado por Arvo Pärt, um compositor erudito estoniano. Pärt também compartilha de uma postura quieta e melancólica diante da vida que parece contaminar a sua música. Com um estilo minimalista e de inspiração profundamente religiosa, o compositor inventou um estilo próprio que chamou de “tintinnabulation”, no qual as três notas de um acorde são tocas repetitiva e delicadamente, como num sino.

Para Arvo Pärt, a técnica é uma maneira de encontrar um significado na confusão da vida cotidiana: “tintinnabulação é uma área em que às vezes vago quando estou procurando respostas, na minha vida, minha música ou meu trabalho. Nas minhas horas sombrias, tenho a certeza de que as coisas não têm sentido. A complexidade só me confunde, o que me conduz à busca de uma unidade. O que é isso, essa coisa única, e como encontrar meu caminho para ela? Traços dessa coisa perfeita aparecem em muitas formas – e tudo o que não é importante desaparece. A tintinnabulação é assim”.

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ARTISTA: Claire Rousay

Autor:

é músico e escreve sobre arte