Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras – nesta semana, excepcionalmente, publicada na sexta-feira).
ORNITOLOGIA
Eric Dolphy, Jonathan Franzen, José Saramago e o canto dos pássaros
Em uma entrevista dos anos 1960 para a revista Downbeat, na qual John Coltrane e Eric Dolphy respondem a perguntas de críticos de jazz, o entrevistador comenta que Dolphy, em seu modo de tocar, às vezes soa como se estivesse imitando pássaros.
“Você faz isso de propósito? A imitação de pássaros é válida no jazz?”, pergunta o entrevistador, ao que Dolphy sorri e diz que sim, é intencional e que sempre gostou de pássaros. “Eu não sei se é válido no jazz,” ele diz. “Mas eu gosto. Em casa [na Califórnia], eu costumo tocar, e os pássaros sempre assobiam comigo. Então, eu paro o meu trabalho e fico tocando com os pássaros”.
Para Dolphy, os cantos dos pássaros, gravados e depois desacelerados na reprodução, possuem um timbre semelhante ao de uma flauta. Tendo demonstrado seu ponto sobre a conexão entre assobios de pássaros e tocar flauta, Dolphy explicou seu uso de quartos de tom ao tocar flauta. “É assim que os pássaros fazem. Os cantos têm notas entre nossas notas — se você tenta imitar algo que eles fazem e, tipo, é algo entre o Fá e Fá sustenido, e você terá que subir ou descer no tom [para se adaptar]. É algo extraordinário!”.
**
Há algo fundamental no funcionamento dos instrumentos de sopro e na sua associação com o canto dos pássaros: algo abstrato que desperta uma sensação de beleza, de pertencimento ao mundo; uma maneira de comunicação que mimetiza a natureza e escapa ao discurso verbal.
É nessa busca por algo inatingível também porque as notas dos pássaros não respeitam as escalas da música ocidental que os músicos Sarah Belle Reid e Vinny Golia experimentam no álbum Accidental Ornithology. Usando técnicas expandidas, tocando instrumentos de sopro de modo não convencional, eles experimentam uma comunicação de pássaros imaginários.
No álbum, ouvimos flautas e sussurros gargarejando, na tentativa de arrulhar, gorjear, trinar, gracitar, em notas que soam como acidentes, mas, aos poucos, vão se tornando paisagem – e mundos antes inexistentes vão se tornando possíveis.
**
Em um artigo de 2023 para a revista New Yorker, o escritor Jonathan Franzen escreve sobre a sua paixão pela ornitologia, ao mesmo tempo em que explica como se sente distante da natureza, tentando encontrar um meio de acessar os seus mistérios através da literatura.
Ele diz: “desde o advento da fotografia colorida e da gravação de som, descrições extensas tornaram-se problemáticas em todos os gêneros de escrita, e são especialmente problemáticas para o escritor de natureza. Para descrever bem uma cena da natureza, o escritor é pressionado a evitar a terminologia que é estranha aos leitores que ainda não testemunharam um tipo semelhante de cena. Sendo um observador de pássaros, sei como soa um regulus calendula; se você escrever que um regulus está tagarelando em um salgueiro, posso ouvir o som claramente. As próprias palavras “regulus calendula” são ricas e empolgantes para mim. Lerei avidamente uma lista simples das espécies — grosbeak de cabeça preta, tentilhão lazúli, papa-moscas azul-acinzentado — que uma amiga viu em sua caminhada matinal. Para mim, a lista é uma narrativa em si mesma”. Para o leitor que não seja um especialista, no entanto, nomenclaturas se tornam meras letras embaralhadas.
Para Franzen, para alcançar leitores que estão totalmente envolvidos em sua humanidade, não despertos para o mundo natural, não é suficiente que os escritores simplesmente exibam sua biofilia. “A escrita também precisa replicar a intensidade de um relacionamento pessoal”.
**
Há um mistério fundamental, no entanto, na maneira em como observamos a música, a literatura, enfim, as Artes com “a” maiúsculo em geral, que diz respeito a encontrar sentido justamente na falta de sentido. O escritor português José Saramago resume essa ideia em uma entrevista ao Roda Viva em 2003:
“Para que serve a literatura?”, ele é inquirido, ao que responde com outra pergunta: “Não sei. Para que serve o canto dos pássaros?”.