SINAPSE: o silêncio das ilhas perfumadas

Field recording, tecnologia, Annie Ernaux e o fim do mundo

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras).

 

PÁSSAROS

Field Recording, a humanidade e a tecnologia

 

Ouvi recentemente três álbuns de field recording que, para a minha surpresa, me puseram pensativo sobre os rumos da sociedade. Vou tentar explicar o porquê.

O primeiro deles, field research, de um artista chamado JP, explora sons de detritos humanos. Nele, ouvimos paisagens sonoras vindas de edificações abandonadas, goteiras que ecoam por garagens vazias, placas de aço arrastadas sobre pedregulhos e pedaços de concreto se desfazendo. O que JP propõe é uma visita a lugares limiares, em busca de paisagens sonoras também fronteiriças, criando sons “orgânicos”, mas feitos a partir de lixo tecnológico abandonado por humanos.

O segundo, Lost – For Annie, de Natalia Beylis, registra as mudanças na paisagem sonora no Condado de Leitrim, na Irlanda, ao longo dos anos. Na primeira faixa, ouvimos o gorjear de pássaros que, gradativamente, é substituído pelo ronco de motores e o tilintar azedo de outras máquinas, nos fazendo refletir sobre a interferência humana na formação das paisagens que consideramos naturais. A terraplanagem do campo, as monoculturas introduzidas ali e até mesmo a criação de animais que se adaptam a uma nova geografia – e que passamos a considerar como nativos – fazem parte de um ecossistema em constante transformação.

Já o terceiro álbum, Birds, de um artista chamado Schweben, registra improvisos de saxofone sobre o canto de pássaros. Gravado ao ar livre, o álbum é um exercício criativo de comunicação interespécies: não podemos saber se os pássaros estão respondendo a Hagers, mas ele frequentemente responde a eles. As oito improvisações que constituem as faixas do álbum são exemplos de uma pessoa que tenta literalmente estar em harmonia com a natureza.

A gravação de campo é um lugar onde a música ambiente encontra o seu lado experimental e documental, borrando limites entre gêneros e propósitos da música e, aliás, entre a própria distinção entre som e ruído, entre o que é detrito e o que é harmonia, e assim por diante. Estes três exemplos colocam em jogo a nossa noção sobre a separação fundamental entre humanidade, tecnologia e natureza.

Quando falamos em tecnologia, a primeira coisa que vem à cabeça hoje são as big techs bilionárias que, de fato, contribuem muito para a noção de que o fim do mundo está próximo. Essa degradação que vem com o acúmulo parece um viés, ao menos para mim, quase inescapável ao pensar em todas as crises que vivemos agora, no começo deste século, quando o capitalismo selvagem encontra a crise climática e, enfim, quando o progresso leva à ruína. Essa ideia da humanidade avançar em linha reta, em direção ao futuro que chegará com a máquina, crê que o desenvolvimento é sempre feito ao alimentar as caldeiras com mais carvão, fazendo rodar mais rápido as engrenagens da sociedade. Nesse jogo, as big techs precarizam cada vez mais a vida humana, consolidando nosso desgosto em relação a uma inteligência artificial que cria arte em nosso lugar, ao invés de, por exemplo, lavar a louça.

A Nobel de literatura Annie Ernaux escreveu no seu panorama do século 20 Os Anos sobre a importância e a centralidade que a tecnologia adquiriu em nosso cotidiano, mas não em nossa vida. Ela diz: “A máquina de escrever, com seu ruído e acessórios, a borracha, o estêncil e o papel-carbono, nos levavam a uma época remota, impensável […] alguns anos antes, telefonando para fulano de um telefone público em um café, ou datilografando uma carta para sicrano na Olivetti, era preciso reconhecer que a ausência do celular e e-mail não fazia diferença alguma na felicidade ou nos sofrimentos da vida.” Digo isso porque, ao contrário do que a monocultura da big tech nos faz acreditar com a onipresença dos celulares em nosso cotidiano, eles não são parte fundamental da vida, apenas ferramentas que nos ajudam ou atrapalham a navegá-la.

Enfim, o que estou querendo dizer é que humanos são parte da natureza, e nem toda interferência nos leva ao fim do mundo. Quando pensamos que talvez o fim da humanidade seja melhor para o rumo do planeta, temos que pensar sobre qual humanidade estamos falando. Isso porque se pensarmos na floresta amazônica, é fácil de encontrar novas perspectivas. Ao contrário do que o senso comum indica, a floresta amazônica é o resultado da ação humana, uma grande agricultura indígena feita sobre um solo até então infértil e arenoso: talvez o maior feito arquitetônico e tecnológico sobre o solo nacional em toda a nossa história.

Encerro com Roberto Piva, que elaborou muito bem a ideia de separação entre humanidade, natureza e tecnologia, sugerindo que o progresso e a civilização estejam realmente localizados em um lugar onde não estamos olhando. Mais do que isso, o que os álbuns de field recording mostram é que a potência para a criação de novas perspectivas está no jogo e no improviso:

“‘Meu reino não é deste mundo’ significa que o mundo poderá estar entregue a todo tipo de devastação, quer por bombas, agrotóxicos, industrialização etc., pois para este ponto de vista o planeta Terra é um lugar de passagem, um vale de lágrimas, um lugar de expiação. […] Amnésico e anestesiado pela civilização urbana industrial, robotizado em seus sentimentos, limitado em sua visão pelos edifícios e muros da cidade, o homem moderno não sente mais a alegria cósmica e pagã de participar de um nascer do sol, de um crepúsculo, do silêncio das ilhas perfumadas, do instinto, da imensidão dos mares silenciosos, das estrelas. Reprimindo a criança que existe nele, o homem moderno aniquila os deuses do júbilo em seu coração. Deixa de improvisar sua vida, enquadrando-se na marcha uniforme da sociedade organizada e vestida.”

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Autor:

é músico e escreve sobre arte