SINAPSE: olhar mais para as plantas

Haley Heynderickx, Stefano Mancuso e as frutas sem sementes

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras – nesta semana, excepcionalmente, publicada na sexta-feira).

 

SEMENTES

Haley Heynderickx, Stefano Mancuso e as frutas sem sementes

 

Ao contrário do que muitos imaginam, algumas frutas e legumes que encontramos hoje no supermercado não são a sua versão original, ou seja, não se encontram num estado intocado, original, que sempre existiu na natureza. Na verdade, a grande maioria dos alimentos com os quais nos deparamos no setor de hortifruti foram adaptadas ao longo de séculos para ficarem mais tolerantes a diferentes climas e, claro, mais palatáveis ao gosto humano.

É o caso, por exemplo, do cupuaçu, que foi domesticado há cerca de cinco mil anos por indígenas do médio-alto Rio Negro, na Floresta Amazônica. Também a banana, apenas um exemplo entre muitos outros possíveis, é bastante diferente de sua versão ancestral, que era dotada de pouca polpa e muitas sementes.

Mas, mais recentemente, tem se tornado cada vez mais comum nas grandes cidades as versões hiper modificadas das frutas sem sementes. Trata-se de uma comodidade contemporânea, mas, mais do que isso, de uma desconexão ainda mais profunda com o funcionamento da natureza: uma planta sem semente é o ponto final da riqueza genética de uma linhagem botânica e que pode levar, em último caso, à extinção.


Já escrevi sobre a cantora Haley Heynderickx por aqui. Seu álbum de estreia ensaiava sobre a necessidade de cultivar um jardim, observando nas forças naturais algumas tendências do comportamento humano. Agora, na mesma onda natural, ela chega com seu segundo álbum, intitulado Seed of a Seed, no qual a artista se vê novamente no meio da natureza, enxergando metáforas das dinâmicas naturais na condição humana. Em um disco particularmente carregado de uma imagética botânica – com faixas intituladas “Seed of a Seed” ou “Mouth of a Flower” –, ela se coloca em uma linhagem familiar que evolui a partir da tentativa e do erro.

O curioso é perceber que esse tema não se restringe aos versos da música, mas a percepção que a artista tem de sua própria trajetória artística. Um perfil em seu site diz: a jornada de Heynderickx não é linear. “Um tema que persiste em ambos os álbuns é que Heynderickx ainda está se construindo. Ela está crescendo e mudando, e suas músicas nos convidam a perceber isso também em nós mesmos”.


O autor e botânico italiano Stefano Mancuso, que tanto escreveu sobre as lições que as plantas nos ensinam, também se preocupa com a descendência vegetal. “Na Grécia antiga”, ele escreve, “o filósofo e botânico Teofrasto observou que ‘a repetição é a essência da planta’, enquanto, no século 17, ilustres botânicos como Erasmus Darwin e o escritor Johann Wolfgang von Goethe acreditavam que as árvores deveriam ser consideradas colônias de módulos que se repetem”.

A lição que Mancuso se preocupa em sublinhar é a de que, se quiser sobreviver enquanto sociedade, precisamos olhar mais para as plantas. Uma planta sem semente não deixa descendentes, apenas reproduz a si mesma através de clones. Assim também é com o fenômeno da monocultura, que seleciona o milho apenas em sua versão amarela, a cenoura apenas na alaranjada, ignorando uma variedade imensa de cores, sabores e nutrientes que poderiam enriquecer o mundo e, em última instância, deixá-lo mais resistente a pragas e doenças e, em suma, com mais capacidade de futuro. Diz Mancuso: “o futuro precisa tomar para si a metáfora das plantas”.

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Autor:

é músico e escreve sobre arte