SINAPSE: olhar o passado

Little Moon, Sufjan Stevens, Youth Lagoon, luto e religião

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras – nesta semana, excepcionalmente, publicada na sexta-feira).

 

OLHAR O PASSADO

Little Moon, Sufjan Stevens, luto e religião

 

Deparei-me recentemente com o álbum Dear Divine, de uma banda americana chamada Little Moon. Liderada pela vocalista Emma Hardyman, o projeto ganhou o concurso do Tiny Desk de 2023 com a canção “Wonder Eye”. A musicalidade navega por atmosferas líricas do folk – a voz aguda de Hardyman sempre super melodiosa, instrumentos como violão de aço, banjo e harpa em primeiro plano, sustentados por sintetizadores cintilantes ao fundo.

Graças ao concurso pudemos conhecer um pouco melhor sobre a história por trás da canção. “Wonder Eye” é uma música cheia de indagações – “Is there a knowledge that is found not in knowing?”, ela canta – e acontece num momento de ruptura. A mãe de seu companheiro, também membro da banda e compositor, faleceu após um período difícil acamada. Além disso, o casal aos poucos começou a se desvincular da igreja mórmon da qual fazia parte, uma vez que os preceitos da religião não condiziam mais com a verdade que enxergavam no mundo ao seu redor. A situação toda me faz pensar na música que lida com essas forças maiores – o luto, a religião, a emancipação em relação ao passado.

Em primeiro lugar me vem à cabeça Youth Lagoon, o projeto de Trevor Powers, no álbum Rarely Do I Dream, em que ele utilizou o áudio de gravações caseiras, encontradas numa caixa de sapatos no porão de seus pais, como mote criativo. Utilizando tais registros do passado, Trevor Powers propõe a música como uma arqueologia de si mesmo, coletando os seus fragmentos que foram deixados para trás, construindo e reconstruindo quem é.

Mito e memória se confundem nas letras e gravações de Rarely Do I Dream: com faixas preenchidas por pequenos momentos reais que Powers encontrou nas fitas, o álbum é construído por momentos de intimidade de uma infância retratada na casa de Powers, mas também da elaboração de um artista adulto olhando para si mesmo com distância.

O segundo é Richard Dawson com o álbum End of the Middle, em que pensa em heranças familiares – carreiras, traumas, comportamentos – que são passadas de geração em geração. Um hábil contador de histórias, Dawson elabora histórias fictícias do interior do Reino Unido, mas que refletem um pouco cada um de nós. Todas as faixas do álbum contam histórias de família e seus círculos viciosos, em que uma coisa nunca acaba propriamente no fim, mas sempre desemboca no início da próxima.

Na última faixa, que conta a história de perdão de uma filha diante de um pai, este, no fim da vida, se reconhece num lugar decisivo, e, no melhor estilo “esta maldição acaba aqui”, canta: “But the painful truth eventually caught up with me / I’d somehow become exactly who I’d prayed I’d never be / And the worst part of it was how plainly I could see distant past repeating / how my own dad was with me / It ends right here.”

Em terceiro lugar, me vem à cabeça o incontornável Carrie & Lowell, de Sufjan Stevens, no qual o cantautor elabora a morte de sua mãe, enquanto a perdoa por tê-lo abandonado na infância, tudo isso permeado – como toda a música de Stevens – pelo cristianismo. Recheado de histórias reais e comoventes, Carrie & Lowell acaba de completar 10 anos de existência e vai ganhar uma edição especial em vinil, com um design feito pelo próprio Sufjan – uma colagem de árvores genealógicas de personagens de sua família.

A nova capa é um sintoma do distanciamento de Sufjan com a história contada no álbum. Agora, tantos anos depois, mostra a foto de Carrie e Lowell original. Uma polaroid roída pelo tempo, com o título do álbum mostrando que foi, na verdade, originalmente escrito por sua irmã em algum lugar do passado.

 

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Autor:

é músico e escreve sobre arte