SINAPSE: paisagens do fim

Allegra Krieger, “Apocalypse Now”, “Blade Runner” e o deserto

Loading

Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras).

 

ARREBOL

O deserto e o horizonte do fim

 

Recentemente, escrevi sobre o álbum da compositora estadunidense Allegra Krieger, intitulado Art of the Unseen Infinity Machine. Preenchido de olhares improváveis sobre o cotidiano, a narrativa de Krieger em seu novo trabalho é marcada por um acontecimento trágico. Certa noite, um incêndio começou na loja que ficava no andar térreo de seu apartamento, espalhando-se rapidamente pelo prédio todo. A artista primeiro tentou escapar pela saída de emergência, que estava emperrada, e depois correu escadas abaixo, mas escorregou, e acabou sendo salva por um bombeiro minutos depois de padecer da fumaça. No meio do acontecimento, sua vizinha infelizmente não sobreviveu.

Penso nessa realidade marcada pelo fogo, mas, mais do que isso, na dimensão da tragédia que pode ser sublimada através da música. No Brasil, vivemos um mês de setembro marcado pelo signo do fogo, com o céu encoberto pela fumaça e um sol vermelho despontando no horizonte como o Olho de Sauron. Ao longo do mês, tem sido inevitável falar em termos apocalípticos e levantar metáforas distópicas. Em Apocalypse Now (1979), épico de Francis Ford Coppola, por exemplo, quem aparece é ele: o sol vermelho encoberto pela fumaça. Aquele era um fim do mundo muito próximo do que vivemos hoje, marcado pelo Agente Laranja, um agrotóxico lançado pelos Estados Unidos sobre o Vietnã. Na cena mais famosa do filme, helicópteros despontam no horizonte embalados pela “Cavalgada das Valquírias, música da ópera de Wagner que curiosamente se tornou trilha sonora de cenas de bombardeio.

Há pouco tempo me deparei com o vídeo ensaio Paisagens do Fim, um extenso estudo sobre filmes de ficção que utilizam locações recém-afetadas por catástrofes, investigando como os personagens se relacionam com esses espaços e que relações simbólicas se estabelecem com os vestígios dos desastres. E, enfim, sobre como estes cenários podem se referir a seus próprios momentos históricos ou serem agenciados para outros significados puramente ficcionais.

A sociedade vive em retroalimentação com a sua cultura – imagina problemas a partir do que enxerga no presente, os reproduz em filmes, músicas, literatura que, por sua vez, passam a influenciar a realidade. Nos casos dos filmes distópicos, problemas do século 20 e 21 se alastram em direção ao futuro. Mad Max, Duna e Blade Runner 2049, entre muitos outros, acontecem sobre paisagens desérticas e alaranjadas, encobertas pela poeira e pela fumaça.

É curioso pensar que no Blade Runner original, a atmosfera era perenemente marcada por uma melancolia noturna, simbolizada por uma chuva incessante, de onde soava a música contemplativa de Vangelis. Naquele momento, no qual os androides haviam se tornado indistinguíveis dos humanos, o personagem principal acabaria descobrindo que era parte do problema que procurava erradicar. E, finalmente, isso aponta para um sintoma interessante de um ciclo vicioso, preso na repetição do mesmo mundo, e me leva de volta ao título do início desta coluna, Art of the Unseen Infinity Machine. Ao apontar para a arte, para a máquina e para o infinito invisível, a ficção parece nos dizer: só haverá futuro possível onde houver imaginação.

Loading

Autor:

é músico e escreve sobre arte