Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras – nesta semana, excepcionalmente, publicada na quarta-feira).
BOLA DE METAL
quickly, quickly, Tim Hecker e a memória
Fui surpreendido recentemente com o ótimo álbum de quickly, quickly intitulado I Heard That Noise, que marca uma nova fase para o músico Graham Johnson, se aventurando desde o jazz Lo-Fi em direção a algo mais pop e expansivo.
A faixa de abertura, que dá nome ao álbum, começa com um ruído assustador e metálico, que logo depois se dissipa em uma canção solar e nostálgica. Sobre um piano dedilhado, ele canta: “I forgot who I was / Only because I didn’t want to remember / It was better that way / Slowly decay into a quiet surrender / Until I heard that noise outside begin”.
A ideia de ruído em “I Heard That Noise” parece se misturar com uma ideia de memória, como se, ao escutar um barulho, ele fosse transportado para a vizinhança na qual cresceu. Em uma sinopse, está escrito: “Há um zumbido recorrente de baixa frequência no bairro em que Johnson vive; ele e seus amigos passaram a conhecê-lo como o ‘Som de Kenton’ (que dá nome ao seu estúdio), e eles o identificaram como vindo de algum local de testes industriais nas proximidades. Toda vez que vibra, ele pensa naquela vez que ouviu ‘aquele barulho’ enquanto andava de skate fora da casa de sua mãe. Semelhante, mas mais alto, mais assustador, uma espécie de sirene. ‘Lembro que todos os cachorros começaram a latir no bairro ao mesmo tempo… Um fenômeno realmente estranho e bizarro.’ O padrão de pensamento, disperso com um espaço mental catártico, o levou a gravar a faixa-título, na qual uma introdução abrasiva se dissipa em uma doce balada de piano sobre o ato de lembrar”
**
A incursão de quickly, quickly no terreno da memória, ou da falta dela, provocado por um ruído me lembrou bastante a premissa do filme Memória, do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul. O filme conta, com toques surreais, a história de uma botânica escocesa chamada Jéssica – interpretada por Tilda Swinton – vivendo por um curto período em Bogotá. Certo dia, Jessica acorda durante a madrugada com um estrondo na vizinhança. Depois, ao conversar com outras pessoas, percebe que foi a única a ouvir o barulho. Ao longo dos dias, o barulho parece persegui-la, se manifestando em momentos inesperados em suas incursões pela cidade.
Intrigada, Jessica vai até um engenheiro de som, chamado Hernán, na tentativa de recriar o que ouviu. Ela o descreve como sendo “uma grande bola de concreto que bate contra uma parede de metal rodeada de água do mar”. Ao acessar uma biblioteca de efeitos sonoros para cinema, eles encontram a reprodução de uma pancada que, depois de receber um tratamento de equalização, consegue emular o acontecimento que a persegue.
O processo de Jessica com Hernán, tentando descrever em linguagem verbal e através de imagens e metáforas o som que tem em sua mente, reflete o do próprio diretor do filme com o seu designer sonoro. O momento revela a dificuldade de uma busca por uma memória que não é delineada apenas por imagens, mas principalmente pelo som.
**
Embora o universo sonoro de quickly, quickly seja muito distinto do de Tim Hecker, a explosão sonora metálica do começo do álbum por alguns momentos me lembrou muito o vocabulário deste último.
O álbum Virgins explora um tipo de música ambiente que não é ansiolítica, mas sim que expressa algum tipo de violência. Empregando instrumentos de sopro, piano e sintetizadores em um esforço para fazer o que a música digital não faz naturalmente — que é criar música fora de compasso, desafinada e fora de fase. A capa do álbum é uma referência à famosa imagem de Abdou Hussain Saad Faleh sendo torturado por membros do Exército dos Estados Unidos na Prisão de Abu Ghraib em 2003.
**
O que me leva finalmente em direção ao trabalho de um artista chamado Lawrence Abu Hamdan, que investiga “a política da escuta” e o papel do som e da voz dentro da lei e dos direitos humanos. O artista, que trabalha com organizações como a Anistia Internacional e a Defense for Children International, vem desde 2018 — assim como o personagem Hernán — construindo sua própria biblioteca de sons, onde cataloga um inventário com objetos que pessoas usaram para descrever barulhos.
No trabalho After SFX, há uma tentativa de reconstruir o espaço da prisão síria Saydnaya, em que pessoas foram torturadas, a partir das memórias auditivas dos prisioneiros. Hamdan reproduziu o som de uma porta metálica sendo aberta para um ex-prisioneiro, aumentando o volume gradativamente, na tentativa de determinar a sua proximidade em relação à entrada da prisão. O artista alega que, quando o som era alto o suficiente para se assemelhar com “uma batida de carro dentro da catedral Notre Dame”, o entrevistado reconheceu o barulho como sendo “o som dos pães sendo jogados em sua cela”.
**
Em After SFX, o que se está produzindo não é uma verdade objetiva, mas uma verdade de outra ordem, que diz respeito à intensidade da fome. O terreno estético permite testemunhos vindos de memórias distorcidas que resultam em sons distorcidos e, com eles, novas maneiras de perceber a realidade.