Sinuca com Levi Keniata

O produtor conta como foi a criação de seu disco de estreia, “CÉLULAS”, cujas inspirações vão do Samba Rock ao Funk, de Kendrick Lamar ao pagode dos anos 1990, de colagens de rádio ao som de uma bola sendo encaçapada

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Fotos: Divulgação

“É foda, parceiro, quem diria que em 2020 a gente estaria vivendo essas brisa? Se bem que quem vem de onde nois vem sempre tá com a morte na bota, né? Não é de hoje. Racionais já falou, Sabotage já falou: quem vem de onde nois vem é programado pra morrer, tá ligado? Mas eu acho que a brisa real mesmo é ser programado para viver”. Quem fala é Caue Carvalho, na penúltima música do disco de estreia de Levi Keniata, CÉLULAS (2020). Áudios em tom de lições de vida, ligações com cobranças de aluguel, colagens de rádio e filmes compõem o universo de samples do produtor musical paulistano de 27 anos – e arrebatam o ouvinte. A imersão de “Zigoto”, faixa de abertura, leva a gente para uma partida de sinuca com Levi, fascinado pelo som das bolas encaçapando, em um bar–fantasia, exatamente naquele momento da noite em que não se fala mais de amenidades, mas de vida, morte, perrengues e propósitos: CÉLULAS (2020) é um disco de tele transporte.

E, como em uma partida de sinuca, o tempo voa: as 24 faixas passam com fôlego de sobra e a inventividade de Keniata torna tudo mais interessante, ornando Samba-Rock com Balanço e Funk. “Comecei metendo o louco, né? É muita chapação”, brinca Levi. “É até irônico: eu ia lançar meu disco de estreia, como artista, daqui, sei lá, uns quatro anos, tinha vários outros processos para fazer antes. Mas a gente ia começar a turnê do álbum do Ôbigo e caiu; o disco do Marabu estava com previsão para ser lançado e caiu; o disco da Nayra estava começando a ser feito, brecamos também. Em abril eu pensei que não fazia sentido só fazer música quando tudo voltasse ao normal”.

Em um processo completamente diferente do seu próprio — que às vezes toma dois anos para lançar um trabalho —, o produtor musical dispôs de suas ferramentas e encarou um novo desafio. “Tinha umas composições que não tinham sido usadas em outros discos, eu já estava compondo também. Começaram as conexões mesmo: ‘mano, tô te mandando uma brisa’, ‘tô te mandando outra fita’, foi rolando. Aconteceu de uma galera mandar áudio em uma semana qualquer e eu comecei a querer usar no disco, comecei a querer me conectar”, relembra.

CÉLULAS veio com agenda apertada.  Além dos outros trabalhos em curso, Levi queria fazer um remédio. “Não podia me dar dois anos, um ano sequer. As pessoas estão sentindo ansiedade nesse momento, as brisas erradas estão batendo agora. É quase como perguntar qual é o tempo de uma vacina perfeita, sabe? Longe de mim dizer que o disco é uma vacina, mas se alguém quiser escutar alguma coisa para baixar a febre ou para aumentar a temperatura também, essa pessoa vai encontrar isso no disco”, explica.

Entrevistei o Levi numa quinta-feira pela tarde através de uma chamada de vídeo. Aproveitando que ele menciona o estado de internação de uma pessoa na faixa “19×12”, pergunto se seu pai tinha se recuperado. “Foi meu tio, ele faleceu segunda-feira à noite, quase de madrugada”, conta Levi. “Ele foi internado na sexta, entubaram ele no domingo e ele faleceu na segunda. É mais um número, né? Pessoal vai computar e falar ‘hoje morreram 720’, mas são 720 pessoas que têm história, vida, família. E você sabe que a situação em que a gente está agora é condicionada por esse desgoverno, que influencia até no imaginário das pessoas”. Especialmente depois dessa semana, Keniata está convicto de que a coisa mais importante da vida é viver.

Células são a unidade mínima, básica e fundamental de qualquer organismo. Do latim, a palavra significa “um pequeno aposento”. “Essa situação de pandemia, de quarentena, tem uma característica desde o macro, de parecer que a gente é um organismo que se der um problema em um ponto, vai dar problema em outro ponto, até o microrganismo, células: elas têm que trabalhar juntas para o organismo voltar a funcionar”, explica.

“Acho que, quando você considera que o processo criativo é estar vivendo a vida e se colocar no lugar de observador, você entende que tudo que acontecer ou não acontecer se transforma em arte. Pensar a inspiração como essa manifestação de uma ideia durante o processo só faz sentido se você já estiver submetido a esse processo. Quando você entende que esse processo está rolando até você morrer, você permite que a inspiração venha”

Sobre células e borboletas

“Tem Samba Rock e Balanço nesse disco, como também tem Funk, então até as pessoas que vão trabalhar nisso tem que estar previamente alinhadas para entender do processo criativo, que essa sonoridade pede um outro tipo de recurso melódico, de interpretação e caneta poética, entender que essa sonoridade dialoga com outro imaginário. Tudo isso leva muito tempo de busca, pesquisa e entrega. Meu disco favorito do Lamar é o To Pimp a Butterfly (2016). Inclusive, para mim, esse disco foi um tapa na cara. Eu estava começando a produzir na época, sampleando Elis Regina, uns Funk e tentando encontrar uma bateria eletrônica que casasse de fato com uma brisa de música brasileira, em que o bumbo e o surdo dialogassem com uma rítmica do samba. Eu já percebia que fazer uma bateria de Boom Bap ou Trap não casa com sample de Samba ou MPB porque é uma outra rítmica; se você fizer isso, um dos dois vai ceder, e quem cede sempre é a música brasileira, em favor de um flow ou bateria de Rap.

Tava trocando ideia com os caras, falando ‘A gente tem que fazer uma coisa nossa, ir para o Funk, fazer umas fita assim’, mas não rolou. Lembro que o Kendrick tinha acabado de lançar, escutei o disco de ponta a ponta, vários músicos que participavam já acompanhava da cena de Jazz lá de fora. Comecei a perceber o quanto isso realmente faz sentido: para ele conseguir trazer uma nova sonoridade para o Rap, ter um conceito artístico fodido, uma história foda e bem contada, só que com outra instrumentação, pegada musical, ele teve que beber de fato na sonoridade dele. E dos músicos que fazem parte desse movimento! Eu, preto, morando em São Paulo, filho de nordestinos, que cresci escutando Pagode, como vou trazer Jazz, Blues para um disco e ficar totalmente fundamentado? Não vou conseguir —não moro lá, não tenho o sentimento dos pretos de lá, não é só uma questão de arranjos, de uma frase no saxofone, trata-se de compartilhar daquele sentimento. Qual é o sentimento que tenho daqui?

Comecei a olhar para a minha própria vida, olhar para a vida dos meus amigos, olhar para a rua, a me situar. Às vezes, várias histórias que você escutou da sua mãe, do seu tio e não deu atenção, sabe? A narrativa estava lá. Quando você se propõe a olhar para essas parada, você percebe o quanto isso é valioso, que é muito importante a história da vida dos seus avós, da sua família, do seu vizinho, do seu amigo; quando você transpõe isso para arte, você percebe o quanto as histórias que te cercam são importantes. Existe todo um universo aqui rondando a gente e o imaginário do que a gente já vive pode dar mais potência ainda a sua história. Por isso foi um tapa na minha cara esse disco. Inclusive, de Rap, é o melhor disco feito até hoje”.

Ao que importa: balanço

A formação musical de Levi transita por extremos: muito vem da igreja evangélica, o que torna ainda mais adorável a faixa “FM”, mas muito também vem da vizinhança. “Quando eu era pivete, me arrumava, passava perfume para dançar Calypso com as minhas vizinhas; cresci ouvindo Forró, Sertanejo, Pagode e Funk”, relembra. Na igreja, sua mãe ouvia Cassiane, Hinos da Harpa — em casa, meio escondida, adora Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, Elba Ramalho, Alceu Valença, Luiz Gonzaga, Calcinha Preta, Aviões do Forró e por aí vai. Na Congregação Cristã, Levi aprendeu teoria musical, mas foi na Assembleia de Deus que ele aprendeu a tocar instrumentos. O primeiro deles foi o saxofone.

Mas, quando Keniata se refere a sua “universidade musical”, não é da igreja que ele está falando. “Toda a galera que eu escuto, minha universidade musical é década de 1970, seja no Brasil, Jamaica, Estados Unidos ou Inglaterra, todos eles têm um sentimento de amor pela vida muito forte”, pontua. “Às vezes eu escuto as músicas da década de 1970 e fico achando que o mundo parecia que estava para acabar mesmo, tudo tem essa pegada de que é nosso último dia de vida, então vamos fazer acontecer nessa porra, tá ligado? Eu sinto uma identificação muito forte com isso”.

“Quando eu vou fazer minhas paradas, já estou ouvindo o arranjo ou a melodia na minha cabeça. Criar é sobre ir atrás e perseguir esse sentimento, ir atrás desse som”

Se pudesse passar um dia inteiro em um estúdio com outro produtor musical, Levi escolheria estar com Wilson Prateado, músico responsável pelo som de muitos artistas, como Os Travessos, Sensação e Belo. “Eu gosto do Prateado antes de saber quem era ele. Sabe quando você vicia nas músicas e uma década depois você descobre que o cara estava por trás de todos esses trampos? É como se rolasse uma identificação de personalidade musical”, conta. Curiosamente, Levi foi desses produtores musicais que fez minha cabeça antes de eu saber quem era ele. “A Mais de 100”, do Ôbigo, certamente foi uma das músicas que mais marcou meu 2017. Infelizmente, só descobri que Keniata foi o produtor arquitetando essa pedrada à la Boogie Naipe depois da nossa entrevista.

“Balanço tem duas explicações que estão juntas”, diz Levi sobre um dos conceitos mais enigmáticos e saborosos do disco. “No primeiro momento, vem do Sambalanço, que é uma musicalidade do Rio de Janeiro antes do Samba Rock na década de 1950 e 1960 — tinha uma pegada de fazer uma bossa nova que desse pra dançar, que tivesse esse suingue para dançar nas boates, é daí que nasce Wilson Simonal, por exemplo. Segundo, eu percebo que quando você chega numa roda de samba e fala ‘esse mano ou essa mina tem balanço’, você já sabe que a pessoa tem muito suingue, percebe o momento de fazer o contrapeso das parada, tá ligado? Tem essa estética musical e essa parada popular sobre balanço. Comecei a pensar que essa sonoridade tem essa pegada do 2, do suingue. E se o mundo está totalmente envergado, a gente tem que fazer alguma coisa para ter esse contrapeso”, convoca Levi, com a precisão de quem encaçapa as bolas decisivas da partida. Keniata prossegue: “Se os cara faz 1, a gente vai fazer o 2. É o famoso: balança, mas não cai. Ser bamba é essa fita: não importa o que os cara fizer, eles vão envergar, mas a gente não quebra. Com CÉLULAS eu quis fazer um movimento de contrapeso no mundo”.

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ARTISTA: Levi Keniata