Sons e cores de Maria Rita Stumpf

A artista (e jornalista) gaúcha fala sobre carreira, parcerias de longa data, desafios do streaming e rememora sua íntima relação com o universo indígena, celebrada no disco “Inkiri Om” (2020), que ganhou um projeto ao vivo especial

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Fotos: Reprodução

Niré perdeu as contas de quantos recados já tinha dado aos 7.500 colonos descendentes de europeus que ocuparam indevidamente as terras indígenas da reserva Cacique Nonoai, no Rio Grande do Sul. Em 1978, Niré e cerca de 1.500 índios como ele resolveram dar um basta a uma série de abusos praticados pelos invasores – que fizeram piada quando o líder da tribo indígena gentilmente bateu à porta de cada um para avisar que era hora de partir. Dias após o último alerta, os invasores de Nonoai perderam o sono na madrugada: todas as escolas da região foram incendiadas. Assim começava um dos capítulos mais surpreendentes da resistência indígena, quando os índios Kaingang, munidos de arco e flecha, retiraram os posseiros com armas de fogo em punho.

As invasões começaram em 1940, muitas vezes, a mando de políticos, fazendeiros e empresários poderosos da região. A cantora Maria Rita Stumpf, jornalista de formação, estava lá e acompanhou a cobertura deste episódio de perto. A experiência marcou a artista, que tem grande influência da cultura indígena em sua obra, como é possível constatar no álbum Inkiri Om (2020), cujo significado é “o amor em mim saúda o amor em ti”, conforme a língua dos povos indígena do sul da Bahia, complementado pelo “Om”, o mais importante mantra do hinduísmo, criador de todos os sons. A cantora foi redescoberta por colecionadores de vinil em função do álbum Brasileira (1987), que rendeu uma participação na coletânea Outro Tempo, de John Goméz, além de uma sequência de apresentações em grandes festivais, como Kino Beat, Dekmantel São Paulo e Women’s Music Event. O disco Inkiri Om surgiu após 27 anos do lançamento de Mapa das Nuvens.

Quem quiser pode conferir uma série de shows online chamada “Somos Um”, desenvolvida para divulgar o álbum e com as participações de Paulo Santos (Uaktí), Michelle Abu (percussão), Mayra Viner (violoncelo) e Felipe Faraco (teclados e baixo). Vale também destacar as bases eletrônicas feitas por Matheus Câmara, o Entropia-Entalpia, residente da Mamba Negra e integrante do Teto Preto. Sobre a experiência em tocar com instrumentistas tão experientes, Matheus traz uma reflexão: “É sempre um prazer tocar, compor, gravar e trocar com músicos tão importantes para a construção da música brasileira como aqueles que encontrei na gravação do álbum Inkiri Om. Acredito que esta soma de visões, processos e técnicas seja um dos mais fortes elementos no trabalho da Maria Rita Stumpf. É como se este encontro fosse a ferramenta que ela tem para caminhar com tanta naturalidade por tantos ambientes sonoros. Para mim, é sempre muito enriquecedor”.

Outro artista participante do disco cuja história de vida se entrelaça com o universo indígena é Paulo Santos, ex-integrante do Uaktí, grupo de músicos, formado em 1978, que criou instrumentos nada convencionais com traquitanas e tubos de PVC. Uakití é um personagem da mitologia dos índios Tukanos, um monstro que vive às margens do Rio Negro, que tem seu corpo cravejado de buracos capazes de produzir sons quando ele corre contra o vento na floresta.

O lendário cantor Paul Simon se encantou pelo Uaktí durante um ensaio e os apresentou a Philip Glass. O resultado: o grupo fez carreira internacional, gravou com Glass as composições do espetáculo “Águas da Amazônia – Sete ou oito peças para um balé” para a companhia de balé Grupo Corpo, além de ter se apresentado em Atenas, na programação dos Jgos Olímpicos ao lado de Glass. A respeito de sua imersão na cultura indianista, o músico afirma: “O Uaktí nasceu de uma lenda dos índios Tukano, então a relação com o universo sonoro indígena sempre esteve presente na minha vida musical. Neste cenário, eu gravei a  trilha sonora original do documentário Hotxua, de Gringo Cardía e Letícia Sabatella, na aldeia Krahô, em Palmas. Atualmente, participo deste trabalho da Maria Rita Stumpf que visita o universo dos povos indígenas, e que sempre o fez desde o LP Brasileira, que gravei com ela junto com o Grupo Uaktí em 1987”.

Ao ser questionado sobre os instrumentos utilizados nas gravações de “Somos Um”, ele conta: “Eu utilizo instrumentos inspirados na experiência com o Grupo Uaktí, como a Marimba de Vidro, que é uma criação do Marco Guimarães, feita pela Josefina Cerqueira, outra ex-parceira do Uaktí”. Flautas de Bambu e Flauta Taques, que é de PVC, Escam, uma estrutura tubular de PVC afinados e percutidos com baquetas de borracha, efeitos de sementes e folhas do Pará e a Darbuka, um tambor Sírio, dividem espaço com a Marimba de Vidro no setup.

Abaixo, uma conversa com Maria Rita Stumpf:

Durante sua carreira como jornalista, você participou de uma reportagem sobre indígenas no Rio Grande do Sul. Você pode contar mais sobre este episódio?

Na realidade, no ano de 1978, eu estudava jornalismo, mas já trabalhava em redação e nesse ano houve um grande conflito entre a etnia Kaingang de Nonoai – no norte do Rio Grande do Sul, onde eu nasci – e colonos que ocuparam suas terras. Caco Barcelos, que ainda morava lá, fez uma grande matéria sobre o conflito, que só vim a conhecer muitos anos mais tarde. Como eu trabalhava em rádio jornalismo na época, acompanhava o desenrolar daquela situação absurda que acabou por me inspirar a criar o “Cântico Brasileiro nº 3” que ficou conhecido como Kamaiurá e acabou conhecida no mundo todo, através do streaming e até antes disso, via DJs e colecionadores de vinil.

De que forma essa experiência afetou e influenciou sua visão em relação ao universo indígena?

Eu já tinha uma conexão muito forte com o universo indígena e negro, e também de culturas de diversas partes do mundo desde muito pequena. Sempre fui fascinada pelos sons e pelas cores do oriente, da cultura árabe, tibetana, da Índia muito especialmente, e a nossa cultura de raiz africana e indígena. Em 1992, trabalhei no Fórum Global com populações indígenas do mundo todo. Posteriormente, fui ao Canadá a convite de Ed Burnstick, um grande sábio indígena da nação Cree, que conheci no Rio de Janeiro nesse evento, que era paralelo à Conferência Rio 92. Lá conheci o festival Dreamspeakers, de cinema de povos indígenas do mundo todo. No meu terceiro álbum, seria natural seguir falando dessas populações e também da preservação do planeta.

Por que você escolheu essa turma de músicos para o seu show? Quais são as qualidades artísticas de cada um que você mais admira?

Trabalho com Paulo Santos, fundador do Grupo Uaktí, desde 1987. Tocamos juntos a vida toda e seguiremos juntos sempre que for possível. Ele é um grande músico e arranjador. Conheci Matheus, nosso Entropia, em 2018, e criamos uma conexão criativa e humana muito forte e bonita. Matheus é um talento ímpar, um mágico do som, sempre em evolução. Toquei com Michelle Abu, mestra das percussões e da bateria pela primeira vez no Women´s Music Event, no ano passado. Ela é nosso metrônomo, repleta de criatividade e inspirações indígenas e negras que coincidem com meu universo sonoro. Felipe Faraco é um ótimo tecladista, baixista e pessoa suave. Mayra Viner, spalla da Orquestra de Câmara da USP, no naipe dos violoncelos, é uma musicista criativa, dedicada e maravilhosa pessoa, indicada pelo maestro Gil Jardim, amigo talentoso de muitos anos.

Como você está lidando emocionalmente com as notícias sobre a situação dos indígenas brasileiros durante a pandemia?

Com muita preocupação, tristeza e tentando colaborar através das minhas redes e canto para chamar atenção sobre essa situação e também da grave destruição do nosso meio ambiente, que está sendo promovida sem trégua e escasso controle. Teremos que conviver com as consequências, como povo e nação.

Você teve uma pausa significativa na carreira musical, mas voltou com uma presença forte em festivais importantes, como Dekmantel e Kino Beat. De que forma você lida com essa volta aos palcos presenciais interrompida pela pandemia?

Para mim e para todos os artistas das artes cênicas, a situação é muito difícil e já era antes da pandemia. A experiência do WME no ano passado, na Casa Natura sem público e a gravação do show ‘Somos Um’, que lança em vídeo o álbum Inkiri Om, com seus ensaios e gravação amenizaram um pouco a ausência de contato. Mas lido com a pandemia em todos os seus âmbitos por meio de meditação e ação criativa e espero colaborar para o alívio das pessoas através da música. Por isso lancei Inkiri Om em plena pandemia.

O que você mais sente que mudou do seu processo criativo e forma de lidar com a música na época do Brasileira para o Inkiri Om?

Na sua essência, pouco. Eu sempre reuni pessoas de grande talento e sempre fui afortunada nesse sentido. O processo de livre criação dos músicos que proponho, associado à presença de Ricardo Bordini, um mestre da música acadêmica e sensorial, presente desde o início, se complementam. No Brasileira, pode-se dizer que a produção era minimalista. Somente eu, Luiz Eça, Ricardo Bordini e o Grupo Uaktí. No Inkiri Om eu diria que é “maximalista”, seguindo com grandes músicos, muitos deles amigos da vida toda como Ricardo, Paulinho do Uaktí, Jovi Joviniano, Marcos Suzano, Lui Coimbra, Maurício Carrilho, Sergio Assad. E outros mais recentes, como Danilo Andrade e Kassin Kamal ,que conheci no lançamento da coletânea Outro Tempo, em 2017, quando voltei ao palco, pela primeira vez com Paulinho junto. Matheus Câmara (Entropia- Entalpia) conheci em 2018 e teve presença muito importante na gravação do álbum ao lado de Ricardo Bordini e de Philippe Ingrand, o Doudou, melhor ouvido que conheço, que captou todos os sons do álbum. Diferentes gerações aprendendo uns com os outros e ampliando vivências e saberes. E, ainda, Ayran Nicodemo, grande violinista e João Lyra, mestre da viola caipira. Foi um processo com várias facetas, com arranjos estruturados e arranjos criados em estúdio, outros criados pós estúdio a partir de muito material gravado e adições eletrônicas posteriores, que transitaram por um universo sonoro muito amplo.

Transmissões:
16 de abril, sexta-feira, às 21h – Teatro Alfa YouTube/FB

youtube.com/teatro alfa e facebook.com/teatroalfa

17 de abril, sábado, às 21h – Centro Cultural Olido/FB

facebook.com/centroculturalolido

22 de abril, quinta-feira, às 21h – Teatro Alfa YouTube/FB

youtube.com/teatro alfa e https://pt-br.facebook.com/teatroalfa

24 de abril, sábado, às 21h – Maria Rita Stumpf e Antares SP/ FB e YouTube

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