Sufjan Abençoou Esta Terra

Em seu décimo aniversário, “Greetings from Michigan: The Great Lakes State” permanece como um dos melhores álbuns de Stevens

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The Great American Novel é um conceito usado nos Estados Unidos para expressar uma obra da literatura que, além de seu grande valor artístico, fosse um retrato fiel do que o povo estadunidense vivia no período em que o tal livro fosse escrito. É um ideal, um conceito quase utópico, porém sempre mirado por artistas e críticos, como se a ambição de estar diante de uma criação dessas fosse a corrida do ouro da produção cultural naquele país.

Algumas obras de cinema parecem suprir essa carência de uma arte de valor histórico sendo feita em nosso tempo e não teria por que a música ficar de fora. Sei que a tentativa de um brasileiro afirmar que um álbum ganha o título de Great American Novel seria fora de contexto, mas foi ouvindo Greetings from Michigan: The Great Lakes State que entendi melhor esse conceito.

O disco percorre ao longo de suas quinze faixas diversos detalhes da terra-natal de Sufjan Stevens sob um olhar crítico e emotivo, construindo aos poucos uma ilustração do que é viver nos Estados Unidos, já que Michigan serve como uma metonímia certeira para se entender e até mesmo sentir aonde foi parar o tal do American Dream.

O estado é fruto da grande industrialização vivida no país após a Segunda Guerra Mundial, principalmente a da indústria automobilística, e de todas as promessas que esse progresso trazia. A natureza deu tanto os recursos para o capitalismo agir, quanto as belas paisagens para contribuir com a qualidade de vida de quem se mudava para o local para viver o sonho da estabilidade.

Sufjan Stevens – *Greetings from Michigan: The Great Lakes State*

Pós-11 de setembro, a ideia de um modo de vida e de pensamento assim soa vintage por si só, como um cartaz antigo que expressa uma época quase ingênua. Lançado em 1º de julho de 2003, Michigan traz – no banjo Folk, nas melodias folclóricas e na bela orquestração de Stevens – uma homenagem sentimental à nostalgia de um sonho do qual a América se recusava a acordar.

Termos como “desemprego” e “viúvas” aparecem ao longo do álbum entre os versos sobre fábricas ou sobre as belezas naturais do local, como se ele pintasse um grande mural em que todos os dados e sensações conseguissem caber de uma só vez no enquadramento. Nesse cenário, as músicas parecem se dividir em dois grupos, um com fortes pinceladas de cores quentes de um lado e outro com azuis escuros e verdes acinzentados na direção oposta.

Chega a ser quase surrealista como as mudanças entre o desconsolo e a esperança acontecem no disco, assim como as construções das letras surgem a partir de situações diversas ou apenas de substantivos – o que dá a impressão, em nosso olhar 2013, de feitas por apenas hashtags -, por exemplo na sequência da melancólica Holland com a épica Detroit, Lift Up Your Weary Head! (Rebuild! Restore! Reconsider!) com uma estrofe só feita com palavras ligadas ao estado, como industry e Henry Ford.

Mesmo com essa mistura ao longo das faixas entre desamparo (Oh God, Where Are You Now? In Pickeral Lake? Pigeon? Marquette? Mackinaw?) e força de vontade (Say Yes! To M!ch!gan!), simplicidade (Romulus) e grandiosidade (Sleeping Bear, Sault Saint Marie), acústico (For the Widows in Paradise, for the Fatherless in Ypsilanti) e elétrico (The Upper Peninsula), o tom do álbum parece crescer da tristeza à esperança, como se passasse por todas as fases do luto e se reerguesse pronto para a vida nos dias de hoje. Ele faz isso indo do macro ao íntimo da primeira à última música. A melancólica abertura com Flint (For the Unemployed and Underpaid) é um lamento sobre um grande número de pessoas sem trabalho e remuneração, enquanto a última, Vito’s Ordination Song, é o canto de celebração à ordenação pastoral de um amigo – uma figura de impacto positivo senão em um grande número de pessoas, em um grupo de amigos que participam da esperança de ver um conhecido disposto a entregar todo seu tempo para cuidar do mundo pelo lado de dentro.

Sem uma história bem definida em sua linha narrativa, Michigan está longe de poder ser considerado um romance propriamente dito. Ainda assim, fica como um marco na carreira de Sufjan Stevens não só por ser o primeiro da anedótica e ambiciosa série de um disco para cada estado de seu país (planos que foram desmentidos após o lançamento de seu sucessor, Illinoise), mas como o registro poético de alguém que viu um povo atravessar mudanças de comportamento ao longo de algumas décadas e soube cantar magistralmente qual era a sensação de ser norte-americano há dez anos e ao longo desse tempo. De fato, Great.

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MARCADORES: Aniversário

Autor:

Comunicador, arteiro, crítico e cafeínado.