“Sunbather” – Pequeno Clássico Contemporâneo

Obra improvável que une Post-Rock e Black Metal consagrou a carreira de Deafheaven

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(Leia entrevista com a banda; adquira seu ingresso para o show em São Paulo)

Deite-se no chão em um dia de sol, com o seu rosto virado para o céu e os olhos fechados. O que você vê? Qual a impressão imediata, meio reconfortante, meio vertiginosa, que se forma em sua retina? A camada de cor dessaturada que provém da mistura entre três ou quatro tons de rosa pastel, aquela que percebemos quando temos os nossos olhos fechados contra a luz, é a capa de Sunbather, e o gancho ideal para falarmos do álbum responsável por consagrar a trajetória da banda americana de Black Metal e Post-Rock Deafheaven.

O filósofo Giorgio Agamben, em seu ensaio intitulado O Que é o Contemporâneo?, faz uso da analogia entre as células da visão e a qualidade daquilo que ele chama de “contemporâneo”. O autor evoca as descobertas relativamente recentes no campo da neurofisiologia acerca das células presentes nos nossos olhos que entram em atividade quando estamos no escuro. O que acontece quando fechamos os olhos? O que é esse escuro que vemos? Ao contrário do senso comum, nossos olhos, quando estão fechados, não estão em simples inatividade, estão produzido uma espécie particular de visão. Nos diz ele que “perceber o escuro não é uma forma de inércia ou de inatividade”, mas sim uma espécie de habilidade em descobrir nele sua faceta “especial”. O contemporâneo é este capaz de descobrir algo de único em sua treva.

Por isso parece fazer todo o sentido a união entre o motivo principal de Sunbather, os olhos fechados diante da luz, e a qualidade única que o trabalho contém, sua contemporaneidade, ou seja, sua capacidade de enxergar no escuro.

O lançamento de um álbum de Black Metal, em 2013, com uma capa cor-de-rosa, e com um título que faz apologia a um banho de sol, já dava sinais de estarmos diante de um dos trabalhos tanto mais imprevisíveis quanto improváveis daquele ano. Afinal, os indicativos apontavam corretamente para um álbum de sucesso. O rompimento das fronteiras entre estilos, a união entre as melodias dissonantes e melancólicas do Post-Rock, a força dos seus build-ups instrumentais, a massa sonora potente do Black Metal, a angústia existencial de temas vindos do Emo e do Shoegaze, alinharam elementos idiossincráticos em um álbum extremamente interessante, dinâmico e expansivo.

Há dois tipos de personagem — “sunbathers” — no álbum, que correspondem a dois de seus temas principais. O primeiro, um banhista que o vocalista George Clarke vê de longe, é uma crítica ressentida a um estilo de vida próspero, no qual alguém é capaz de relaxar despreocupadamente à beira de uma piscina. Esta aversão ao dinheiro, que se trasmuta no desejo em possuí-lo, podemos encontrar na faixa de abertura Dream House, assim como na faixa-título Sunbather. O segundo, por sua vez, é o próprio compositor, que se encontra desmaiado no sol após beber demais. Essa segunda persona, adicta, que o vocalista vê como uma herança do comportamento do seu pai, e essa constante relação de desejo e dependência pelas drogas, é evocada em faixas como Vertigo, Windows e The Pecan Tree. O contraste entre essas duas realidades, ou melhor, entre essas duas faces de uma mesma realidade, ditam o cenário no qual Clarke, amparado pelos outros integrantes de sua banda, expõe sua raiva, seus desejos e suas obsessões em uma espécie de auto-análise poética.

Embora Sunbather não seja um álbum necessariamente temático, a coerência entre suas letras, assim como o modo que sua dinâmica evolui — com faixas instrumentais mais plácidas interseccionadas com outras que ultrapassam os dez minutos de duração —, tornam-no um trabalho coeso. Sunbather é capaz de atrair (como, aliás, de fato atraiu) a atenção de um público diverso, porém igualmente interessado, pois expande as fronteiras do Metal e redefine aquilo que o estilo pode ser.

Clarke divaga dolorosamente sobre o personagem que é os personagens que poderia ter sido. A fronteira entre os estilos musicais se expande e abarca novos territórios ao mesmo tempo em que os transcende. A banda fecha os olhos para a luz e acaba, com isso, descobrindo o que há de único em sua própria escuridão. É nesse território de possibilidades até então inauditas que Sunbather acaba por consagrar-se como um dos álbuns mais interessantes de nosso tempo e, assim, configura um pequeno clássico contemporâneo.

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ARTISTA: Deafheaven
MARCADORES: Redescobertas

Autor:

é músico e escreve sobre arte